Por que está o fanatismo no futebol tão ligado à violência?
O fanatismo no futebol torna as claques “especialmente propensas à violência”, o que levanta uma “questão urgente”: o que há no desporto-rei e na cultura dos adeptos que torna estes incidentes tão mais prováveis?
O fascínio global do futebol é incomparável, mas a sua história é marcada por tragédias. Numa partida de futebol em 4 de dezembro de 2024 em Nzérékoré, na Guiné, o fanatismo no futebol após uma decisão controversa da arbitragem levou à agitação, resultando na violência da multidão que custou “mais de 50 vidas”, embora uma ONG tenha denunciado “mais do dobro dos mortos“.
Em 2022, a violência no estádio Kanjuruhan, na Indonésia, durante uma partida de futebol levou à morte de mais de 130 pessoas, enquanto as forças de segurança responderam às invasões de campo com gás lacrimogéneo, provocando caos e, por fim, uma aglomeração de pessoas.
Estes incidentes são lembretes gritantes dos riscos ligados à violência em multidões desportivas. Decorrem de “falhas estruturais, má gestão de multidões e, com frequência, dinâmicas de grupo complexas que levam a comportamento violento”, diagnostica Milad Haghani – um dos mais proeminentes especialistas em risco urbano e professor de Risco Urbano e Resiliência da Universidade de Nova Gales do Sul, Sydney.
As claques de futebol são “especialmente propensas à violência“, o que levanta uma “questão urgente”: o que há no futebol e na cultura dos fãs que torna estes incidentes tão mais prováveis?
Violência entre adeptos de futebol: um padrão recorrente
Incidentes catastróficos enraizados na violência dos fãs estão interligados à história deste desporto. O caso mais extremo talvez seja o da ‘Guerra do Futebol‘ de 1969, quando uma das eliminatórias para o Mundial entre El Salvador e Honduras inflamaram as tensões políticas existentes. Conflitos entre adeptos aumentaram a animosidade e, em poucos dias, as nações estavam em guerra. Mais de 2 mil pessoas morreram no conflito. Além dos episódios já apontados, há muitos outros casos na história do desporto-rei.
Desastre do Estádio Nacional (1964, Peru)
Tumultos eclodiram após um golo anulado durante a partida Peru-Argentina, em Lima. A polícia usou gás lacrimogéneo, provocando caos enquanto os adeptos tentavam escapar por saídas trancadas. Registaram-se mais de 300 mortes.
O Desastre do Estádio Heysel (1985, Bélgica)
Conflitos entre adeptos do Liverpool e da Juventus antes da final da Liga Europa provocaram o colapso de um muro. Trinta e nove pessoas morreram e mais de 600 ficaram feridas.
Revolta no Estádio Port Said (2012, Egito)
Após uma partida entre Al-Masry e Al-Ahly, vários adeptos atacaram-se mutuamente com armas enquanto as saídas estavam bloqueadas. Setenta e quatro pessoas morreram e centenas ficaram feridas.
Na Austrália, a memória do caótico Derby de Melbourne em 2022 será ‘eterna’. Os adeptos invadiram o campo no AAMI Park depois que um ‘very light’ ter sido atirado para uma das bancadas. O guarda-redes do Melbourne City, Tom Glover, foi atingido por um balde de metal, que o deixou a sangrar abundantemente.
Mais atrás, em 1985, uma partida da National Soccer League entre o Sydney Olympic e o Sydney Hakoah explodiu em caos após uma decisão controversa do árbitro. O caos, aliás, continua a ser um dos exemplos mais notórios de violência de claques na história do futebol.
A violência dos fãs de futebol pode assumir muitas formas
A imensa popularidade do futebol significa bases de fãs maiores e mais diversificadas, com rivalidades profundamente enraizadas. “Os adeptos sentem o seu clube como parte essencial de sua identidade“, diz Milad Haghani. Esta “forte afiliação ao grupo aumenta por vezes a dinâmica ‘dentro do grupo versus fora do grupo‘, e isto pode per vezes levar à hostilidade”.
A violência dos adeptos de futebol assume muitas formas. “Atos violentos e antissociais variam de abuso verbal e cânticos ofensivos a danos à propriedade, vandalismo, invasões de campo e agressões físicas.” Em alguns países, “a violência dos adeptos de futebol piorou desde a pandemia“. No Reino Unido, por exemplo, “estatísticas policiais recentes revelam um aumento de 59% nas detenções em comparação aos níveis pré-pandémicos, com incidentes de desordem a atingirem o pico em oito anos”. “A larga maioria dos delitos – 70% – foram cometidos por pessoas de 18 aos 30 anos.”
Os jogadores também podem ser afetados. Um relatório de segurança no local de trabalho de 2023 da Federação Internacional de Jogadores de Futebol Profissionais destacou o problema crescente de violência contra jogadores profissionais, enfatizando o impacto prejudicial no seu bem-estar físico e mental.
O relatório revela que um número significativo de jogadores sofreu “abuso, incluindo ameaças e agressões físicas”, tanto “dentro como fora do terreno de jogo”. Os dados mostram que a violência de adeptos contra jogadores é mais comum na Europa (particularmente Reino Unido, Itália e Alemanha), seguida por África.
O que está por trás desta tendência?
1. Identidade social
A violência dos adeptos de futebol está por norma profundamente ligada à dinâmica da identidade social. Estudos na Alemanha e no Brasil enfatizam o papel da “fusão de identidades”, em que “os simpatizantes vivenciam um vínculo intenso com aos seus clubes e companheiros de claque”. Esta fusão cria uma “psicologia guerreira”, fazendo com que as ameaças ao grupo “pareçam pessoais, a ponto de levar os fãs a defenderem a sua identidade de forma agressiva”.
Os jogos de alto risco exacerbam a violência, que aumenta até 70% durante partidas de dérbi na Alemanha. Estes estudos mostram que “a violência no dia da partida é motivada mais pela rivalidade e dinâmica de grupo do que pelos resultados dos jogos”. No Brasil, a mesma fusão de identidades “demonstrou gerar hostilidade, especialmente em relação a claques rivais”, já que “os adeptos percecionam ameaças de outros grupos como existenciais“.
2. Características sociodemográficas
“Estudos destacaram como os apoiantes ‘fanáticos’ – geralmente jovens, desempregados e com níveis mais baixos de educação – são mais propensos a envolver-se em violência, moldada pelas normas do grupo e pelos níveis de agressão aceites”, assinala Milad Haghani. No Reino Unido, os estudos “revelaram mudanças históricas“. “Enquanto o hooliganismo prosperou em culturas da classe trabalhadora e hipermasculinas, uma gestão mais apurada de multidões e a gentrificação reduziram a violência no estádio, embora os confrontos ocorram ainda longe destas ‘arenas’.”
A WhatsApp group for football banter started as an escape from the real world.
But it soon became a command centre for Britain’s culture war…
Episode 4 of The English Disease with @SamDiss, out now: https://t.co/Tx3a20CHUc pic.twitter.com/7rPxjkGu2M
— Stak. (@StakPod) October 15, 2024
3. Uso de drogas e álcool
“O uso de substâncias pode aumentar a agressão“, confirma o especialista. O “uso de cocaína entre os fãs é maior do que as médias nacionais“. “A combinação da crescente cultura de drogas entre fãs no futebol com a fusão de identidades pode evoluir para um comportamento agressivo, principalmente durante conflitos intergrupais.” O álcool, embora não seja “universalmente causal“, “também pode alimentar confrontos ao diminuir inibições e ampliar a territorialidade”.
O que pode ser feito?
Apesar destes padrões, algumas regiões tiveram melhorias significativas. Décadas de reformas, como CFTV no Reino Unido, estádios com todos os assentos e preços de bilheteira mais altos “promoveram uma cultura de adeptos mais higienizada e gentrificada“, com os próprios fãs “a auto-regularem o comportamento violento”.
No entanto, estas medidas “também podem deslocar a violência para espaços menos visíveis”, onde grupos rivais “organizam confrontos para evitar a intervenção policial”. Reduzir a violência relacionada com o futebol “requer uma abordagem multifacetada que tanto quanto aos ‘gatilhos’ estruturais quanto aos psicológicos”. Várias evidências sugerem que “criar dinâmicas de grupo positivas, em vez de suprimir simplesmente a identidade do apoiante, é essencial”.
Outras estratégias podem ainda incluir iniciativas para “reformular as rivalidades como positivas e recíprocas“, “melhoraras táticas policiais, utilizando o diálogo e a redução da tensão em vez da força”; “melhorar a gestão dos fluxos de multidões e reduzir os pontos de atrito, como a minimização dos fluxos de contracorrente de adeptos rivais durante as partidas”; e a promoção de “intervenções sobre o uso de substâncias, especialmente as que sejam voltadas para o uso de drogas”, acrescenta Milad Haghani.
O desafio, no entanto, “está em implementar estas soluções e, ao mesmo tempo, preservar a paixão e a energia únicas que fazem do futebol o deporto mais amado do mundo”, conclui o especialista em risco urbano e professor de Risco Urbano e Resiliência da Universidade de Nova Gales do Sul.
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