O duro alerta para a violência infantil da série ‘Adolescência’ da Netflix
Através da jornada traumática de Jamie, Adolescência expõe não apenas o tratamento ‘desumanizador’ de jovens infratores, mas também “conceções erradas mais amplas sobre a infância e a criminalidade que continuam a dominar as políticas públicas e o discurso”.

Adolescência, o novo drama policial da Netflix, é poderoso e instigante. Explora uma série de questões que afetam os jovens de hoje, incluindo o aumento da masculinidade tóxica, a cultura “incel” (aglutinação de termos em Inglês com o significado em Português de “celibatários involuntários”), o bullying nas redes sociais e a luta pela identidade na escola. De acordo com Megan Smith-Dobric, doutorada em Direito da University de Oxford, a produção faz mais. “Levanta questões críticas sobre como o Reino Unido trata os jovens infratores”, defende.
A série acompanha Jamie Miller (Owen Cooper), de 13 anos, preso sob suspeita de homicídio depois de uma rapariga da sua turma de ser assassinada à facada. Jamie, um adolescente aparentemente ‘normal’ de uma família ‘comum’, desafia as crenças comuns sobre crianças infratoras. “Por norma”, assinala Smith-Dobric, “presume-se que estas crianças vêm de origens disfuncionais e inevitavelmente no caminho para a criminalidade”.
No enredo, os agentes que entrevistam Jamie referem-se repetidamente a ele como “brilhante” e “inteligente” – “características que por norma não são associadas a crianças que cometem crimes hediondos”. Na série, as autoridades encontram outras formas de alinhá-lo com o estereótipo do delinquente infantil.
Numa tentativa de racionalizar as ações de Jamie, a série dá inicialmente a entender que o pai, Eddie, interpretado por Stephen Graham, pode ter abusado dele – que acaba por ser apenas uma suspeita infundada, sinaliza a doutorada em Direito da Universidade de Oxford.
A série da Netflix complica, portanto, a narrativa típica do delinquente infantil, “incitando os espectadores a reconsiderar as suposições que fazemos sobre os jovens”. Em vez disso, “pede que nos concentremos no tipo de sociedade que estamos a criar para as crianças na era da Internet e das redes sociais.
O primeiro episódio lança uma luz pouco lisonjeira sobre o sistema de justiça juvenil do Reino Unido através da descrição angustiante da prisão de Jamie – uma experiência profundamente humilhante e aterrorizante que define o tom da série. Num espaço de minutos, polícias fortemente armados arrombam as portas da casa da família Miller. Gritam palavrões e vão de sala em sala, com as armas em punho.
“A brutalidade da cena é reforçada pela reação visceral de Jamie. Molha as calças, demonstrando adequadamente não apenas o seu medo, mas também a forma como o sistema judicial trata os jovens como infratores, em primeiro lugar, e crianças, em segundo.” Além disso, acrescenta Megan Smith-Dobric, “a capacidade de Jamie para compreender totalmente os seus direitos permanece incerta para o espectador”. Enquanto lê a advertência da Polícia, declaração formal que informa os suspeitos sobre o direito de permanecerem em silêncio, o pai pressiona-o para que ele simplesmente confirme que entende os direitos.
Este interrogatório em ritmo acelerado continua na esquadra, onde Jamie é bombardeado com várias perguntas de cunho adulto antes mesmo de tomar o pequeno almoço. “As perguntas incluem ‘Tens um advogado ou precisas de um?’ ou ‘Já te explicaram os teus direitos?’, sem poucas ou nenhumas explicações sobre o significado das perguntas.”
Nesse momento, Jamie está “claramente em choque para responder de forma significativa e honesta”. A cena ilustra “de forma contundente os resultados de investigações bem estabelecidas que mostraram que crianças e jovens não têm geralmente conhecimento suficiente dos processos de Justiça Criminal e, mais profundamente, dos seus direitos”.
As instalações são projetadas para a detenção de adultos suspeitos de crimes e, na série, “isso fica bem demonstrado pela utilização de violência e palavrões durante todo o tempo em que Jamie passa na esquadra”. “Os agentes pouco lhe oferecem em termos de conforto, de apoio ou de segurança emocional, o que levanta questões sobre se estes ambientes são apropriados para jovens vulneráveis.”
A chamada de atenção que a série Adolescência nos deixa
A provação mais horrível a que Jamie é submetido é, “de longe, uma intrusiva revista íntima” conduzida por dois agentes do sexo masculino, apesar dos protestos do pai. “A revista íntima continua a ser uma prática padrão quando as crianças entram na prisão, depois das visitas que recebem e, por fim, quando acabam de receber visitas ou de forma indiscriminada na própria cela a isso novamente quando recebem alta, depois de uma revista no quarto ou após uma visita.”
Um relatório recente revelou que, entre janeiro de 2018 e junho de 2023, uma criança foi revistada mais do que uma vez por dia em Inglaterra e no País de Gales. A mais jovem tinha apenas oito anos – “muito abaixo da idade de responsabilidade criminal”, sublinha Smith-Dobric.
mas “ainda mais preocupante” será o fato de que “em quase metade (45%) dos casos não foi possível confirmar a presença de um ‘adulto apropriado’, apesar de essa ser uma salvaguarda legal”. Além disso, “47% de todas as revistas íntimas não resultaram em qualquer ação adicional”, o que “questiona a sua necessidade”, afirma a doutorada em Direito.
Considerando o profundo impacto psicológico e emocional que tais práticas “podem ter sobre as crianças até à idade adulta, acredito que há até mesmo um argumento convincente de que violam o Artigo 6, ‘o direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento'”, acrescenta Smith-Dobric.
Através da jornada traumática de Jamie, Adolescência expõe não apenas o tratamento ‘desumanizador’ de jovens infratores, mas também “conceções erradas mais amplas sobre a infância e a criminalidade que continuam a dominar as políticas públicas e o discurso”. “Ao instigar os espectadores a repensar a forma como a sociedade trata os seus mais vulneráveis, a série não é apenas um drama policial, mas uma chamada à ação”, conclui Megan Smith-Dobric, doutorada em Direito da University de Oxford.
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