O que é Síndrome de Asperger que Elon Musk revelou ter?

Elon Musk, dono da Tesla, revelou que tem Síndrome de Asperger durante o programa de televisão dos Estados Unidos da América Saturday Night Live. Saiba o que é e se é o mesmo do que Autismo.

Aos 49 anos, o CEO da Tesla revelou aos telespectadores de Saturday Night Live ser “a primeira pessoa com Asperger” a apresentar o programa de crítica humorística. Foi aplaudido pelo público, mas será que todos sabem o que é a Síndrome de Asperger? Será o mesmo que Autismo? “Nem sempre tenho muita entoação ou variação na forma como me expresso. O que me disseram é que é bom para fazer comédia”, ironizou Elon Musk, na abertura do programa com milhões de telespectadores. “Na verdade, estou estou a fazer história nesta noite, como a primeira pessoa com Asperger a apresentar o Saturday Night Live.”

Aplausos na TV e perguntas no Twitter

A revelação gerou uma onda de aplausos na plateia do estúdio, mas o conteúdo daquela afirmação foi muito questionado nas redes sociais. Alguns recordaram que o comediante Dan Aykroyd – que assumiu publicamente sobre a experiência dele com as síndromes de Tourette e de Asperger – já havia apresentado o programa. A confusão e a desinformação é enorme, sobre o que é a condição que afeta genialidades como as dos já referidos, mas também de Albert Einstein, Keanu Reeves, Winston Churchill ou Lionel Messi, para enumerar apenas algumas.

O que é a Síndrome de Asperger de que sofre Elon Musk? Será o mesmo que Autismo?

A discussão sobre se esta condição é robusta o suficiente para ser diagnosticada de forma isolada continua. Os avanços levaram a, de certa forma, incluí-la como um dos aspetos do autismo. Em conversas leigas, ouve-se muitas vezes a definição de que a Síndrome de Asperger é uma forma leve de autismo. Será? Miguel Palha, médico pediatra e diretor clínico do Centro de Desenvolvimento Infantil Diferenças, explica que “a Síndrome de Asperger era [desde 1994 até 2013] a associação de dificuldades no relacionamento social, desinteresse, e comportamentos repetitivos, fixações em objetos ou temas, como horários de comboios, enfim, fixações muito intensas sobre determinados assuntos associados a comportamentos repetitivos”.

“Era condição que a linguagem, designadamente a sintaxe, e, de modo geral, toda a gramática, estivesse intacta. Bem como o desenvolvimento cognitivo. Ou seja, estávamos perante um sujeito com dificuldades no relacionamento social, desinteresse na reciprocidade e na interação social [comportamentos anómalos do ponto de vista da socialização] e comportamentos repetitivos. O autismo era similar, mas os sujeitos tinham também dificuldades na linguagem”, assinala Miguel Palha.

A história da Síndrome de Asperger

Pedro Caldeira da Silva, pedopsiquiatra e chefe de equipa da UPI – Unidade da Primeira Infância do Hospital Dona Estefânia
Pedro Caldeira da Silva, pedopsiquiatra e chefe de equipa da UPI – Unidade da Primeira Infância do Hospital Dona Estefânia

Pedro Caldeira da Silva, chefe de equipa da UPI – Unidade da Primeira Infância do Hospital Dona Estefânia –, vai à génese para contar que a “Síndrome de Asperger tem o nome de um médico austríaco que publicou os seus trabalhos durante a II Guerra Mundial” e que “descreveu quatro casos de crianças muito semelhantes aos descritos antes, nos anos 20 do séc. passado, por uma russa [a psiquiatra Grunya Efimovna] Sukhareva, e penso mesmo que devia ser ela a ter o crédito deste quadro clínico”.

Sukhareva “descreveu então um conjunto de seis casos de crianças, jovens, que, enfim, tinham desinteresse pela relação, comportamentos obsessivos, bom nível intelectual, muitas dificuldades nas perícias sociais com os outros e pouco jeito para a atividade motora fina e grupal também”. Este artigo da Sukhareva “caiu no esquecimento e foi repescado depois pelo [pediatra austríaco Hans] Asperger, também esquecido, e acabou por ser retomado nos anos 1980 por Lorna Wing [médica psiquiatra britânica], que então batizou este quadro como Síndrome de Asperger; e foi ela, portanto, que reintroduziu este conceito na prática da saúde mental”. Simultaneamente, “foi descrito por Leo Kanner [psiquiatra austríaco, radicado nos Estados Unidos] o Síndrome Autista, semelhante ao de Asperger, embora as crianças que o Kanner descreveu tivessem um quadro de apresentação mais grave”.

A eterna discussão: o asperger é um autista ‘leve’?

Desde essa altura que se discute “se a Síndrome de Asperger é uma variante menos grave do autismo ou se é mesmo uma condição diferente”. Pedro Caldeira da Silva diz porém que considerar-se que “a Síndrome de Asperger é um sinal precoce de autismo é um disparate”. “Enfim, Portugal teve uma ‘epidemia’ de Síndromes de Asperger erradamente, penso que por terem deixado de ser os pedopsiquiatras a fazerem o diagnóstico e passarem a ser outros profissionais de Saúde”, acusa, antes de enumerar os sinais a que os pais devem estar atentos o mais cedo possível na vida das crianças.

Em vez de Perturbações do Espetro Autista [que até 2013 se diagnosticava como Síndrome de Asperger], o clínico prefere o termo Perturbação da Relação e da Comunicação, com “evolução e prognóstico muito abertos”. No princípio, “não se sabe sequer se se vai desenvolver e, como é feito um diagnóstico precoce, aproveita-se uma idade em que os bebés têm muita plasticidade no cérebro, e portanto as experiências ajudam a modificar a maneira como as células no cérebro se ligam”, explica, acentuando a importância de se intervir o mais cedo possível.

A intervenção “precoce modifica a forma de funcionamento do cérebro”, afirma o chefe de equipa da UPI do Dona Estefânia. O ideal é as crianças “chegarem-nos com um ano de idade”, quando os pais repararem que o bebé é silencioso. “Abrimos uma consulta em que pretendemos, antes de mais, não alarmar os pais. Pode não ser nada ou pode não ser nada de grave. Ou pode ser alguma condição favorável. Abrimos uma consulta dos bebés silenciosos porque os sinais são negativos neste aspeto: não incomodam, é apenas um bebé muito silencioso.”

Valorizar os interesses da criança

António Nabais, enfermeiro professor na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, coordena a Pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, onde se faz terapia de grupo e sociodrama com Aspergers
António Nabais, enfermeiro professor na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, coordena a Pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, onde se faz terapia de grupo e sociodrama com Aspergers

Depois de sinalizada, a criança pode, portanto, ser ajudada a tornar-se independente. António Nabais, enfermeiro professor na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa e coordenador da Pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, faz terapia de grupo e sociodrama com Aspergers. E na sua prática há um elemento de extrema importância: valorizar os interesses da criança, potenciá-los e, só em segundo grau, tratar o resto: a convivência com o outro, que também é importante, mas secundária.

“Interessa que os pais consigam identificar as características da criança no sentido de ser dada uma resposta o mais regulada possível”, explica o professor, indo ao encontro dos interesses das crianças, nunca as contrariando. “Quando os miúdos têm um gosto, algum prazer em alguma área particular, é sempre uma boa forma de entrar em comunicação com eles, porque têm muito interesse naquela área. E por vezes pode haver interesses e competências muito mais desenvolvidos do que outros e cai-se na tentação de não estimular estas situações e apostar-se onde há maior défice”, o que “é errado”, desenvolve António Nabais.

“Onde há maior défice deve tentar chegar-se até a um nível regular funcional, ao qual chamaríamos ‘normal’. Ou seja, naquilo que está menos desenvolvido temos de conseguir desenvolver ao ponto de deixar de causar incapacidade à criança. Mas aquilo em que ela é boa temos de continuar a estimular para que ela seja realmente muito boa, porque é o que a motiva, é o que lhe dá prazer, é o que a faz continuar a desenvolver-se, a investir e a estar com prazer e com vontade na vida”, diz.

As crianças com Síndrome de Asperger “conseguem adaptar-se”

Independentemente da discussão académica, para os pais não importa que nome tem o diagnóstico, se o filho é asperger ou autista. E é sempre um choque receber a notícia. “Numa primeira fase, o receio dos pais é o de que as crianças fiquem dependentes para sempre”, constata António Nabais. Mas a boa notícia é que “não é verdade que a criança seja dependente toda a vida”. As crianças com Síndrome de Asperger “conseguem adaptar-se”. Apenas “chegam à independência de forma diferente, porque têm características diferentes das das outras crianças” e, sim, “conseguem autonomizar-se”. Depois, “sobre aquelas projeções que os pais fazem sobre os filhos – terem namorada, casarem-se e constituírem família – isso vai decorrer do desenvolvimento da criança”.

Crianças diferentes, nem inferiores, nem superiores

Na generalidade dos casos, estas crianças são diferentes. Nem inferiores, nem superiores. É como “dizer-se ‘aquele sujeito que ali vai tem o nariz muito grande’”, assinala Miguel Palha. “Ele pode de facto ter um nariz muito, muito grande, mas isto é insuficiente”, é apenas uma característica do indivíduo. Comecemos “pelo que não deve ser feito, sobretudo em crianças muito pequenas”: “tratamentos que sejam educativos, isto é, que não tenham em conta esta vida emocional das crianças e que tenham em conta só o ensinar”, alerta Pedro Caldeira da Silva.

“O trabalho das crianças pequenas é brincar. Portanto, estas intervenções têm de ser feitas com o trabalho das crianças, a brincar, no interesse da criança, segundo os interesses delas. E, portanto, o que não deve ser feito é insistir que ela esteja sentada a uma mesa a fazer uma tarefa qualquer. Isto, do nosso ponto de vista, não é adequado na infância – isto é contrário ao trabalho da criança e o próprio termo floortime indica bem: tempo de chão, e portanto a intervenção deve ser feita no chão.”

“Só mais tarde – enfim, na altura da escola –, pode considerar-se adequado que haja intervenções educativas no sentido de que a criança tenha de aceitar fazer tarefas que lhe mandem fazer (que para elas não têm sentido nenhum, mas que a criança começa e acaba porque há uma senhora simpática que pede para fazer). Na idade pré-primária não faz sentido. Portanto, o que se aproveita é o ambiente natural da criança, as experiências normais da sua vida e em que se introduzem algumas técnicas e estratégias específicas do floortime para a ajudar a desenvolver-se – este é o princípio básico. E depois há a atividade sensorial, feita na terapia ocupacional, em ginásio, com balouços, túneis, em que os miúdos recebem informação de vários órgãos dos sentidos ao mesmo tempo e vão organizando a experiência e a resposta. Há várias técnicas”, resume o clínico.

Terapias de grupo e sociodrama com Aspergers

António Nabais, enfermeiro professor na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, coordena a Pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, onde se faz terapia de grupo e sociodrama com Aspergers. “O sociodrama é uma terapia de grupo que nos permite simularmos relações” similares às da vida real, no contexto escolar, por exemplo. “O que fazemos é experimentar diferentes papéis, porque na escola estes miúdos estão sujeitos a algum maltrato ou bullying e não voltam a insistir após a rejeição, e tendem a isolar-se. Mas em contexto simulado podem viver estas coisas todas com as outras crianças e permitir-lhes estabelecer relações uns com os outros do ponto de vista emocional, e disponibilizarem-se para trocarem de papel; o que agora tem a liderança passa, num contexto de dramatização, a ter menos privilégios e vice-versa”, elucida.

Projeto inovador na escola

“Regra geral, são os pais e as crianças que têm de deslocar-se ao hospital e isso causa imensas dificuldades”, regista António Nabais. Para minimizar a situação, a DGS – Direção-Geral de Saúde – financiou um projeto para a “intervenção no Agrupamento de Escolas da Baixa-Chiado”. “O que pretendemos é intervir num momento mais precoce. Fazemos uma avaliação clínica a todas as crianças do Primeiro Ciclo e conseguimos perceber quais são aquelas que estão em risco de vir a ter algum problema ou aquelas que já têm algum problema instalado. Havendo a concordância dos pais (antes e depois do diagnóstico), fazemos uma terapêutica de grupo na escola, em vez de ser no hospital.

“Os resultados obtidos foram bastante satisfatórios. Cerca de 35 a 40 por cento das crianças que nunca foram referenciadas têm ou estão em risco de virem a ter um problema de saúde mental e destas, após a intervenção, 60 a 70 por cento ficam bem; as que mantêm o problema são então referenciadas para uma intervenção terapêutica mais diferenciada, em contexto hospitalar, que requer outro acompanhamento”. Este projeto foi premiado e pode vir a ser o futuro no tratamento de crianças com problemas psiquiátricos.

A viragem no diagnóstico – o DSM-5

Miguel Palha, médico pediatra e diretor clínico do Centro de Desenvolvimento Infantil Diferenças
Miguel Palha, médico pediatra e diretor clínico do Centro de Desenvolvimento Infantil Diferenças

Miguel Palha, pediatra diretor clínico do Centro Diferenças, reforça que até determinado momento, de facto, “a Síndrome de Asperger era a associação de dificuldades no relacionamento social, desinteresse, e comportamentos repetitivos, fixações em objetos ou temas”. “Havia como condição que a linguagem tinha de estar intacta, bem como o desenvolvimento cognitivo. Ou seja, estávamos perante um sujeito com dificuldades no relacionamento social, desinteresse na reciprocidade e na interação social – comportamentos anómalos do ponto de vista da socialização – e comportamentos repetitivos.

“O autismo era similar”. Mas “os sujeitos tinham também dificuldades na linguagem”. Em 2013, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) “vem dizer que não há défice linguístico – deixa de ser critério – no autismo”; e que, “se houver, tem de ser classificado em separado”. “E então, o DSM-5 diz que a Perturbação do Espetro do Autismo é basicamente a Síndrome de Asperger.”

Aspergers que todos conhecemos e admiramos

Vários famosos bem-sucedidos vivem com esta condição. O físico Albert Einstein, o ator Keanu Reeves e o futebolista Lionel Messi são alguns desses nomes. Leonardo Da Vinci ou Bill Gates são outros dos alegadamente diagnosticados com Perturbação do Espetro do Autismo. A condição impede uma vida normal? Não. Apenas diferente, e isso pode ser bom sinal. Pergunte-se a Elon Musk se não é assim…

Texto: Luís Martins;
Fotos: Tito Calado

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