Simone de Oliveira faz hoje 82 anos | A entrevista de vida em dia de aniversário

Aos 82 anos, que se assinalam esta terça-feira, 11 de fevereiro, Simone de Oliveira tem um dos mais ricos percursos de vida.

Simone de Oliveira, 82 anos feitos esta terça-feira, 11 de fevereiro, recebeu-nos em casa para esta entrevista que agora recuperamos. A conversa revela a mulher, mais do que a artista. «Nunca hei de sair daqui. Nunca, nunca. Podia ter uma casa maior? Podia, há muito tempo, e não foi por falta de insistência» dos filhos. «Não quero. Não quero, não quero! É a minha casa. Está paga, é minha, não devo nada a ninguém!» É um larzinho cheio de personalidade, todo arrumadinho só com o essencial, mas onde também estão alguns dos prémios acumulados ao longo da carreira.

No televisor moderno que tem em casa, vê «uns disparates», mas também «coisas maravilhosas, de vez em quando»

Na sala, senta-se sempre de costas para a janela por onde Varela Silva atirava o fumo do cigarro, quando se sentava à escrivaninha que já lá não está. Nesse lugar, há agora um móvel e uma televisão moderna, de plasma, de leds, enfim, das recentes, onde Simone vê «uns disparates», mas também «coisas maravilhosas, de vez em quando». E Simone de Oliveira fala de situações e de atores, mas depois pede para «não escrever os nomes». Cada um que se denuncie. «A consciência é o melhor juízo e portanto cada um sabe se vai bem ou mal», diz-nos. A entrevista foi acertada dias antes, vinha Simone a sair do hospital onde vai com frequência vigiar a saúde, não vá o cancro que entretanto venceu reaparecer.

«Venho ao hospital por causa dos problemas que tive, não é…?»

«Venho cá por causa dos problemas que tive, não é…?» Depois meteu-se no táxi e foi à vida dela, provavelmente a cantarolar. Ela cantarola muito, sim. Normalmente para ilustrar os momentos que nos relata. Mede a vida em episódios, não em anos. E são tantos e tão ricos que Simone devia ser Museu, em vez de Mulher, Património classificado; eventualmente Mulher-Museu.

Que benefícios traz a fama?

A fama é uma faca de dois gumes. Se não tiramos dela proveito com uma certa tranquilidade e bom senso, com os pés no chão, ela é perfeitamente efémera. Não é uma coisa que possamos comprar. É-nos dada pelo público, através do nosso trabalho e da nossa imagem. Por outro lado, essa coisa da fama já me trouxe tantas dores de cabeça. Tanta invenção. Tanta coisa que não sei como é que se desmente porque as pessoas metem aquilo na cabeça, porque leem e acham que a verdade é aquela… Por outro lado, trouxe-me a possibilidade de você estar hoje aqui na minha frente, ao fim de 57 anos do meu percurso, a conversar comigo.

E nos momentos bons, é bom?

Ah, caramba! Com certeza que sim. Só se fosse perfeitamente pateta é que dizia que não. Tem os dois lados.

A construção de uma falsa imagem é o pior da fama?

Credo! Tive telefonemas para casa dos meus pais, desde me terem morto até matarem a milha filha em desastres, dizerem que eu tinha morrido, foi há um ano… Também disseram que eu tinha Alzheimer… Quer dizer, você olha para mim e vê se tenho ou não… Isto aconteceu pelo facto de eu ter dito que há coisas de que tenho medo. Naturalmente, neste medo a palavra cancro não me faz tanto medo como outras palavras porque convivo com isso de há 25 anos para cá…

Que imagem acha que as pessoas têm da sua figura pública?

Que sou vaidosa, narcisista.

Não é?

Em determinados momentos, talvez eu dê essa ideia.

Fama representa Poder?

Não. O Poder não me interessa para nada.

Nem pequenos privilégios?

O pequeno privilégio é uma merda! É horrível! É horrível. Horrível. O pequeno Poder não é nada, mas às vezes tem influência no grande Poder. Porque é sub-reptício, porque é através da palmadinha nas costas, atrás do sorriso que não é sorriso, atrás da mentira que não é mentira, atrás do suborno…

E a Simone era incapaz…

Que horror! Nunca. E este país está cheio de pequenos Poderes, em todas as situações, em todos os lugares. Eu quando vejo médicos que fizeram falcatruas, advogados que fizeram falcatruas, começo a questionar em quem posso acreditar. E aí começo a acreditar um bocadinho em mim, que é o que me resta. Todos os dias há sempre uma personalidade que nós achávamos que não, dali não… Os próprios polícias…

O Poder corrompe e o Poder absoluto corrompe absolutamente.

Completamente. Corrompe, e se a pessoa não tiver um bocadinho… Eu percebo, eu percebo, se a pessoa não tiver coragem para dizer que não a umas notinhas que fazem muita falta, vai atrás…

A Simone rejeita inclusive o pequeno privilégio? Dou-lhe o exemplo de quando alguém lhe diz “Sra. D. Simone, faça o favor de passar à frente”…

Não! Mas eu não passo!

Mas há quem passe.

Eu não passo!

Não reconhece que o seu nome tenha um peso?

Reconheço, reconheço. Reconheço que o nome Simone de Oliveira abra determinadas portas em situações mais difíceis. E se este meu nome abrir portas em relação aos outros, eu faço-o. Com certeza.

Já o fez?

Já o fiz. Não tenho de andar a dizê-lo nos jornais, nas entrevistas. Em relação a mim, por exemplo a nível de médicos. Tenho alguns que são meus amigos. Ligo a dizer que estou aflita da garganta e respondem-me logo “passe por cá”. Enquanto outras pessoas ficam horas à espera.

A fama projeta uma figura…

… é…

… mas acaba por limitar o indivíduo.

Caramba! Bolas… Tira-lhe a privacidade toda… Completamente…

E é difícil despir a figura?

Eu não vou fazer compras sem me pintar. Não é que às vezes não me apeteça ir sem me pintar. “Aquela velha, coitadinha, ao que ela chegou”… Isto é tão português…

Há uma cautela sua.

Não em excesso, mas há uma certa cautela minha. Há uma imagem que eu criei, talvez até nos últimos dez ou 15 anos, e que, até pela própria idade, tenho de procurar manter. Porque se não é o descalabro total, de mim para os outros e de mim para mim. E eu não quero.

Então, a imagem limita a sua liberdade?

Não. Isso é que não.

Limita-a pelo menos nestas pequenas liberdades.

Mas eu também gosto de me arranjar… A minha mãe não saía de casa sem pintar as unhas. Era escusado! Não valia a pena! Não! Sem se arranjar, sem por a sua “pinturinha”, não valia a pena…

É de família?

O meu filho não sai de casa sem estar impecável. E por sua vez os filhos são assim! Não vale a pena. Nada de cores garridas. Os pretos, os castanhos, os cinzentos.

Discrição?

Discrição! Discrição, discrição, discrição, discrição! São assim, foram assim, e portanto ensinaram os filhos. Quer dizer, isto já vem lá de trás. Do meu pai, da minha mãe. O meu pai era pendular. Pendular.

Para alguém que tem a discrição nas veias a questão da privacidade deve ser muito importante.

Sim, eu sinto muito falta de privacidade. Sinto mesmo muito. Principalmente nestes últimos dez, 12 anos. Muitas revistas, muitas entrevistas, muitas capas, muita curiosidade, produções, e foi o livro, e foi o disco – embora o disco não toque, mas isso é outra história, pronto… É, sinto falta de privacidade, sim, um bocadinho, um bocadinho. Mas ao mesmo tempo isso é agradável porque me obriga a… a…

… disciplina?

A uma disciplina. O que não acontece a muita gente da minha idade.

O famoso acha-se omnipotente?

Sim, sim!

E é narcisista?

Sim, sim, sim, completamente. Acha que faz tudo. Faz uma merda, não faz coisa nenhuma!

Mas convence-se disso?

Convence. Convence-se de que é assim que se vive. Mas eu não sou assim. Tanto vou à tasca como ao restaurante xpto – e é engraçado, os restaurantes xpto cansam-me muito, muito; e quanto mais vou andando, mais me cansam… Estive em todos, como imagina, aqui e lá fora. Em grandes hotéis, em grandes restaurantes, em grandes boates, em grandes casinos, onde cantei, grandes coisas… Eu cantei no Sporting Clube de Monte Carlo – pouca gente sabe porque as notícias não saíram cá. Só eu e a Amália cantámos lá. Foi a coisa mais snobe que vi na minha vida. Não sei se hoje não haverá mais snobes, mas mais do que o Sporting Clube de Monte Carlo, du-vi-de-o-do. Íamos pelos jardins de Monte Carlo e eu vi um “ganda” nome lá em cima. Eu assim: “ah, quem será?”. Quando chego lá acima e vejo que era o meu, só parei no hotel!

Ficou intimidada?

Medo!? Cagaço! Cagaço! Aliás, que continuo a ter hoje, ainda há tempos no Coliseu. Tremem-me as pernas, faço chichi de dez em dez minutos… “Simone, falta meia hora!”, vou fazer chichi. “Simone, 20 minutos”, “dez minutos”, “cinco” e aí paro! É um horror!

É nesses momentos em que essas falsas sensações de narcisismo e omnipotência desvanecem.

Coitadinhos, vamos vomitar para a casa de banho e ter ataques nos intestinos… E não me digam que não é assim, porque é assim! Nos primeiros anos não era tanto assim. Tinha medo, mas não o medo que tenho hoje. Não tem comparação. É medo e respeito. Respeito por quem paga para nos ir ver, não a nós, mas à nossa personagem. Não julguem que nos compram a alma. Não.

É a diferença entre o indivíduo e a figura pública.

É, embora nisso não tenha razões de queixa. Seria injusto da minha parte afirmá-lo. Mas já houve a fase “deixa lá ver como é que está o decote, o cabelo, a gaja é gira” – já houve essa fase; passou, felizmente.

A imagem é importante no famoso; há uma certa escravização a que alguns cedem; Jacob Pinheiro Goldberg resume-o na frase “a televisão é o caso típico da velha que acha que fazer plásticas vai torná-la jovem”. É assim?

Exatamente, mas eu sou precisamente o contrário. Velha é velha.

Há histórias que só podem ser contadas com rugas.

Ó minha Nossa Senhora, como é óbvio.

Já concordou que a fama não pertence ao famoso.

Sim. É uma coisa fugaz.

Usufrui-se de uma coisa emprestada.

Claro, com certeza. É a grande salva de palmas, que dura uns segundos, um minuto se tanto, e depois tu vais para o camarim, tiras a pintura e… E vais para o teu carrinho que está guardado ali no coiso, não é… Não tens ninguém à porta à tua espera… E vais para casa.

O famoso fica viciado em aplausos? Pode viciar?

Pode. Pode, pode. E há pessoas que não aguentaram isso.

Frank Sinatra…

… António Mourão…

Que se afastou nos anos 1990, sem justificação…

Quando começou a envelhecer, fechou-se; desapareceu. A própria Amália… Teve uma grande, grande, grande dificuldade… Tenho dois sinónimos de solidão: a Amália e o José Carlos [Ary dos Santos].

A fama é solitária?

Claro que sim. Claro que é. E aí há que saber gerir isso. Como há que saber gerir a altura em que as palmas acabam. E é preciso começar a aprender isso cedo.

No seu caso…

Aprendi muito cedo. Não que não tenha palmas, porque para além das palmas do palco – que as tenho – , tenho outro tipo de palmas, que é diário – ou por aquilo que eu disse, ou por uma entrevista que eu dei, ou pela minha forma de dizer as coisas… Um privilégio que não se traduz materialmente, embora não deva nada a ninguém. A minha casa está paga, mas nunca fiz férias em lado nenhum, não consegui…

Acha que merecia?

Uns 15 dias, não digo em Miami, nem em Cancún – até porque tenho pavor de aviões… Saí para variadíssimos sítios em todo o Mundo, mas sempre em trabalho. A maior aventura terá sido uma vez em que fui daqui a Paris tocar em dez restaurantes num boca de sapo meu. O banco de trás era a minha casa. Fui tratada de champanhe para cima e a camarão. Chegou a uma altura em que já não podia com aquilo. “Por favor, deem-me batata cozida”, pedi a determinada altura. O primeiro chamava-se Saudade e a família toda, portuguesa, vivia num quarto atrás da cozinha. Nunca tinham ido à Torre Eiffel…

Parece uma cena do A Gaiola Dourada. Viu o filme?

Então não vi.. Acho a Rita Blanco um espanto. Chapeau! Chapeau! A minha filha viu e ligou-me. “Mãe, por amor de Deus vai ver A Gaiola Dourada!” Delicioso, delicioso!

Sente, a esta distância, que passou ao lado de uma carreira internacional?

Podia, mas fui estúpida. Não fui estúpida, mas enfim… Foi o que teve de ser.

A Simone leva-se a sério?

Olhe, quando me condecoraram – com a mesma condecoração que tem o Cristiano Ronaldo, está ali [A Ordem do Infante D. Henrique, uma ordem honorífica que visa a distinguir a prestação de serviços relevantes a Portugal, no País ou no estrangeiro, ou serviços na expansão da cultura portuguesa, da sua História e dos seus valores.] – eu não acreditei, julguei que estavam a brincar comigo. “Estou? Pela sua saúde, agora a brincarem comigo.” Telefonei para o Luxemburgo, para a minha filha. “A mãe não acredite nessas coisas, que a mãe acredita em tudo! Não vê que alguém está a brincar consigo!” E oito dias depois o senhor que já me tinha telefonado insistiu. E eu: “espera” – e fiz uma pausa expressiva, de pasmo. “Era para perguntar a vossa excelência se vossa excelência aceita…” Ainda pensei que fosse mérito cultural… É uma cerimónia muito bonita, há um senhor que diz por que é que a pessoa é condecorada. Os meus joelhos tremiam tanto, tanto, tanto, tanto. As únicas coisas de que me lembro bem é dos joelhos a tremerem e da cara do meu filho.

Cara de quê?

Cara de “esta gaja conseguiu chegar até aqui, sozinha, lá de baixo”.

Orgulho.

Sim, sim, sim.

Que é que se lembra de ele ter dito?

Só me lembro de o ouvir dizer “ela é a minha mãe”. E o Pedro tem 52 anos. Isto foi há sete ou oito, portanto ele teria uns 46 ou 47.

Há muitos cantores portugueses que não cantam em Português. Há fronteiras que deviam ser invioláveis…

Eu acho! Estou perfeitamente de acordo consigo.

A Língua também é a Pátria.

Estou completamente de acordo consigo. A minha Pátria é a minha Língua. Esta merda que a gente tem cá dentro, como costumo dizer. Porra! Que chatice, pá! e depois a gente vê o mar e diz assim: pá ninguém tem, este mar assim. Ninguém tem esta puta desta terra, pá! E depois amamo-la mal, passamos pelas coisas nem damos por elas. Olhamos uns para os outros e só falamos pelo Twitter e pelo coiso. Já não olhamos, não dizemos coisas… Não! Depois fazem tudo atrás da porta. Ou então fazem tudo na televisão… Oh, Diabo, lá estou eu!

Politicamente incorreta.

Toda a vida fui… O meu pai dizia-me “Ó Simone, eu um dia vou-te levar um maço de tabaco à prisão”. Eu tinha 20 anos, foi quando comecei a fumar. “Isto um dia destes acontece uma coisa qualquer e tu vais presa.” Está bem, senhor Pai – era assim que o tratava. Senhor Pai. E Senhora Mãe.

Texto: Luís Martins | WiN

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