«Tocava nas ruas aos 14 anos e ganhava uma sanduíche» – a vida de pobre de Pedro Abrunhosa

Há 12 anos, a canção Quem Me Leva os Meus Fantasmas era banda sonora da novela Ilha dos Amores, com Sofia Alves, Marco d’Almeida e Joana Solnado nos papéis principais. Conheça, dez anos depois, o outro lado da vida de Pedro Abrunhosa.

O álbum Luz faz dentro de poucos meses 12 anos. Foi o quinto trabalho de originais de Pedro Abrunhosa. O álbum foi lançado em junho de 2007, mas as canções da obra começaram a rodar antes, como por exemplo o single Quem Me Leva os Meus Fantasmas, da novela da TVI Ilha dos Amores. É o momento, dois anos e uma década depois, de olharmos para a vida de 58 anos do autor e cantor, um dos mais importantes do panorama musical português, com uma entrevista nos seus próprios estúdios, em Vila Nova de Gaia, Porto.

Pedro Abrunhosa e o resultado do seu passado

Antes, recorde esse tema do álbum Luz e da novela Ilha dos Amores, que tinha, entre outros, Sofia Alves, Marco d’Almeida e Joana Solnado nos papéis principais.

Não gosta de celebrar o passado. Mas nós não somos o passado? Um homem não é o resultado do seu passado?

Claro. Mas em Arte o passado não existe.

É só uma base.

Exatamente. Na Arte, como na Ciência, o passado está feito. E serve – exatamente, é uma base – como plataforma para projeção de outras coisas. A Arte é isso. Não é a negação do passado, mas não é uma celebração do passado, a contemplação da obra feita. Não estou a ver um escritor a ler os seus livros – não é…? – passados tantos anos. A não ser que seja com um propósito curioso, para os rever, etc. – ou o pintor a contemplar a sua obra –, pelo contrário! Essa dialética em relação ao futuro provém do facto de não se ficar a contemplar o passado. É exatamente isso.

Sob pena de se ficar preso.

Claro. Sobretudo quando as coisas são um sucesso, como foi o caso do Viagens, e como de resto a minha vida discográfica, que tem sido uma carreira de canções que chegam ao público, que cumprem essa função de serem adotadas como suas pelo público, pelas rádios, pelos concertos. Portanto, se elas funcionam, se tiveram realmente esse impacto sociológico, que tiveram, não faz sentido, para mim, olhar para elas sem ser com uma perspetiva de insatisfação. E portanto, celebrar. Ao fim de tantos anos, posso-me permitir fazer uma trégua na minha não celebração. Posso. Ao fim de tantos anos, acho que sim.

Fundação de uma escola, formação de vários quartetos, quintetos, estrada…

De muitos grupos, de muita aprendizagem, de muita tarimba, de muita rua, de muita estrada. Eu misturei o Conservatório e a rua. Literalmente. Estava no Conservatório e simultaneamente fazia bares e rua.

E vem daí o disco Viagens.

Vem das minhas viagens pela Europa, e pelo Médio Oriente. E uma das coisas que sustentavam as minhas viagens era tocar na rua.

Aos 14, 15 anos?

Sim, há uns 40 e poucos anos. Lembro-me de estar a tocar nas ruas de Viena de Áustria – na altura não arriscava ir para muito longe, comecei aos 18 a ir para mais longe…

Viena era longe para quem tinha só 14 anos.

Era. Para todos os efeitos, para quem tinha 14 anos, era longe.

Tocava na rua.

E lembro-me de uma vez chegar ao fim do dia e de ter ganho um pfening [cêntimo do xelim, a moeda austríaca antes do euro] e de ter sido pintado por um retratista de rua. Foi esse o meu cachê. Portanto, foi esse o meu percurso de rua, de bares, aqui, em Portugal, e noutros sítios. Tocava e ganhava uma sanduíche – era esse o meu cachê. E isso deu-me uma tarimba muito grande. E é por isso que não tenho assim muita vontade de olhar para trás e de celebrar seja o que for.

Há bem pouco tempo, Viagens fez 20 anos, e fez uma digressão…

… Com 15 músicos, e foi um revisitar das canções rearranjadas à luz do séc. XXI. E isto dá-me muito, muito gozo.

Rearranjadas para o público ou à luz de um olhar intrínseco, o seu olhar?

As duas coisas. A pergunta é muito pertinente.

Há sempre essa dialética…

Pois há! Mas temos de andar sempre um passo à frente. Nós é que ditamos para onde é que as coisas vão. Não é o público. O público é muito generoso em seguir os passos – umas vezes mais do que outras, é verdade, como por exemplo o caso do Silêncio, que depois de dois mega êxitos foi um disco muito retraído em termos de vendas. Mas também era um disco explosivo, meu, em relação aos mega sucessos que foram o Viagens e o Tempo. É um disco de desconforto para com o sucesso.

Foi um disco sem concessões – ou praticamente sem concessões – do Eu em função do Eles?

Pois.

Introspetivo.

Claro que sim. No primeiro disco, o Eles não existe. Eu era um músico de jazz e o Eles não existia. E no segundo, por inerência – porque faço o primeiro com essa inocência; é por isso que não gosto muito de falar do passado, não gosto de visitar as canções… O método que levou ao Viagens claro que foi a estrada, claro que foi a experiência, claro que foi a escola, claro que foi o amor pela música… Mas foi a inocência. Foi a inocência. Foi a ‘quimera-barra-utopia’. E essa utopia acabou por ser um estrondoso sucesso de vendas. E depois, como é que se sai disto para se fazer um segundo disco?

Como é que se sai?

Pois… Na América não há esse problema, porque a cultura pop americana está habituada a casos de sucesso – e o sucesso não tem de ser explicado, não tem, mas aqui em Portugal há muito a cultura do anti sucesso. Quando as coisas têm muito sucesso aqui, depois é preciso explicá-las muito, muito. Justificá-las muito, muitas vezes, e tal. E portanto há o síndrome do segundo disco. E para resolver essa idiossincrasia nacional tentei perceber como é que eu tinha feito o primeiro, para não ter a pressão dos media, do público, etc..

Uma fuga ao julgamento?

Revestir a inocência. Tem de se perceber onde é que eu estava quando fiz aquilo…

Mas a partir daí, a inocência não deixa de ser genuína?

Acho que… Percebo muito bem a pergunta. Há uma busca da inocência… Quer dizer, não se perde a virgindade duas vezes, não é…? Não se parte o mesmo copo duas vezes… Parte-se outro. Isso é verdade, mas o espírito, a atitude, digamos, a rebeldia, a insatisfação para com, em primeiro lugar para comigo próprio, porque o que existe no Viagens é uma insatisfação com o passado, de músico clássico, ao lado do Jorge Peixinho, do Álvaro Salazar – vultos da música erudita. Mas aquilo não me chegava…

Ser só músico de jazz…?

Músico de jazz, ao lado de muita gente… Portanto, Viagens é um disco insatisfeito. Tempo tenta ser um disco satisfeito e consegue-o. Mas o mais insatisfeito deles todos é o Silêncio. Porque depois do Tempo ter sido, mais uma vez, aquilo que foi…, senti necessidade de uma, de uma… O Tempo é um disco com alguma raiva, raiva para com a… De repente as coisas, de repente há o showbiz, há o espetáculo, e o mundo do espetáculo nem sempre foi muito generoso e é um meio com alguma malícia. E essa inocência é preciso reconquistá-la e o Silêncio é uma rutura. E daí que seja um disco – quando eu digo raiva, é uma raiva para comigo próprio, entenda-se, uma raiva interior – onde a Arte tinha de se impor.

Havia algum sentimento de filho pródigo, uma necessidade imperiosa de regressar à origem?

Não. É um disco duro. É uma fuga em frente. Sai em ‘99 e agora está atual, continuo a tocá-lo. E depois há uma reconciliação comigo próprio no Momento, numa altura muito trágica da minha vida, que é o desaparecimento do meu irmão, e depois há todos os que lhe seguem. Mas visto assim, digamos, sob a perspetiva do psicoterapeuta, o Silêncio é uma espécie de Édipo, uma espécie de Édipo. E agora é esta fase da maturidade da escrita das canções, em que há isso que dizia há pouco; que a inocência seja genuína, que a bondade seja genuína, que a verdade artística seja genuína – e que portanto não se ande à procura de fórmulas de sucesso; porque elas não existem e se as procuras elas traem-te.

Se não se devem procurar fórmulas, como é que as coisas acontecem?

Estás num espaço [o estúdio de Pedro Abrunhosa] que é uma espécie de catedral, que é a minha música, e aqui [virando-se, aponta para o interior do estúdio propriamente dito], ali, dentro daquela sala, que é uma espécie de catedral, por causa da acústica, eu aqui fico, com o piano, só com a acústica da sala, em total reclusão, e não há – conscientemente – público, não há vendas, não há tops…

Não há concessões.

Conscientemente, elas não estão lá. Não posso dizer que não haja, mas conscientemente elas não estão lá – estou a ser o mais honesto possível. Será que inconscientemente lá estão…? Não sei.

Conscientemente no sentido em que a Arte não é nossa, no sentido em que ela só pertence aos outros?

Pois! Ela serve, é uma ponte entre nós e os outros, é uma ponte que os outros usam depois entre eles também. A Arte é uma ponte que as pessoas usam para se identificarem como tribo, como grupo identitário, como grupo que chora os mesmos medos e que anseia os mesmos sonhos. A Arte é uma ótima válvula de escape, por exemplo para o caso que aconteceu em Paris [ataques ao Charlie Hebdo]… De que maneira é que o ser humano reencontra o caminho, em tanto ódio, em tanta maldade? O caminho é realmente a verdade da Arte e ela não mente, é uma forma de reconciliação. E depois também é uma forma de o próprio indivíduo se reconciliar socialmente. É um veículo de escape social, mas também é uma forma individual de aproximação ao outro. Por exemplo, quando estamos num espetáculo e ao nosso lado estão pessoas que não conhecemos de lado nenhum a cantar a mesma música; pode ser do [Leonard] Cohen, pode ser do Sérgio Godinho ou de qualquer outro autor. Há uma sensação de conforto, de comunidade. E a canção é isso.

É paz?

É paz, é! A canção é paz.

Comete-se haraquiri quando a Arte é pensada em função das pessoas que seguem o artista? Ou seja, pode haver momentos de fuga à verdade interior para ser mais fácil atingir os outros, ou o maior número possível de outros?

Pode. Pode, pode.

No processo criativo pensa-se “isto não vai funcionar”, e então fazem-se concessões para que funcione para os outros, ainda que isso fira a verdade intelectual do artista?

Para responder muito honestamente…

No fundo, a pergunta é se se trabalha para os outros.

Não, não. Para ser honesto, não há a influência de terceiros no processo criativo. A expressão que usaste – se funciona, se não funciona – pode ser usada em função de algumas premissas. Uma canção que funciona ao vivo muito bem e que galvaniza ao vivo muito bem, como foi o caso de Será – uma canção profundíssima, do meu segundo disco, que fala de morte, como aliás muitas das minhas músicas, que abordam a temática da morte, porque desde muito cedo ela esteve próxima, e da perda e da despedida, quando as pessoas julgam que é de amor, é de um amor da despedida; eventualmente por isso há essa proximidade com a espiritualidade da canção. A canção é sobretudo um elemento espiritual, a arte é espiritualidade. Quando não é, passa a ser materialidade é já não é Arte, é uma coisa que se usa.

Portanto, não se trabalha para os outros.

Os terceiros não existem nessa premissa da criação, não podem existir. Nós usamos às vezes a expressão no momento da produção da canção, tendo em conta as várias frentes onde a canção vai estar. Uma canção que é muito profunda, como o caso da Será – Será que ainda me resta tempo contigo, / ou já te levam balas de um qualquer inimigo. / Será que soube dar-te tudo o que querias, / ou deixei-me morrer lento, no lento morrer dos dias –, como de resto a É Preciso Ter Calma, que é de despedida entre duas pessoas; uma delas parte e morre com sida, a palavra está lá escrita com as quatro letras na sua ferocidade toda – estamos a falar de ‘94, aliás a música é de ‘93, altura em que era tabu. E portanto são canções no limiar da perda, cumpriram uma função enorme junto do público. Nunca foram grandes êxitos radiofónicos… Portanto, quando dizemos “não funciona” estamos a falar em relação a quê? As canções podem não funcionar muito bem na rádio e funcionar muito bem no público ou funcionar fantasticamente na rádio e não funcionar junto do público (e acontece muito isso). E hoje em dia há uma outra premissa, a terceira, o disco, as pessoas que ouvem o disco do princípio ao fim, e trabalhar em função disso; e depois há ainda uma quarta premissa, que é a Internet. Cada vez mais a necessidade de consumo funciona à velocidade dos gigabytes. E portanto, creio que não é possível dizer que se fazem concessões, de que trabalhe em função disso. O que há muito na indústria pop, rock, mais na indústria pop, é produtos feitos assim, exatamente. Marketeers e raparigas muito bem feitas, como o caso da Rihanna ou da Shakira, mas que de espiritualmente não têm nada, ou têm muito pouco. Materialmente, cumprem uma função…

Qual?

Enriquecer músicos, produtores, editores, editoras, etc.

A indústria.

A indústria. E no entanto têm muito sucesso. Agora, quando se é cantautor e se funciona à escala da espiritualidade, da genuinidade perante o público, não se pode trabalhar em função disso, que é uma escala muito pequena. Percebo que a Nelly Furtado ou a Shakira trabalhem em função do seu público, percebo que sim. Mas o mundo interior delas – porventura aquilo que passa cá para fora através das suas próprias músicas, a música de abdominais – muito dificilmente me deixa pasmado com uma canção. Posso ficar pasmado com um grande rabo ou uma bela barriga, mas com uma grande canção é raro. A última sensação que tive de canção fantástica, sem concessões, e no entanto altamente funcional, é a do Mark Ronson com o Bruno Mars: Uptown Funk, que acho que é uma coisa brutal! E há aí o equilíbrio entre mercado e Arte. É pura genuinidade do Mark Ronson. Mas quando se trata, digamos, da autoria, em que estás a trabalhar um poema e uma música ao mesmo tempo, não podes estar a pensar nisso. Não há mercado para isso. O que existe é a apetência da profundidade genuína das pessoas…

Quando elas estão prontas para aceitar.

Claro! E sabes porque é que elas estão prontas para aceitar? Porque lhes é dado continuamente o contrário disso. Continuamente é-lhes dado um produto fabricado, quer através das televisões, de programas de cantores… Há dez milhões de cantores em Portugal, mas não há ninguém a escrever música. Este é o drama. O grande drama que revela, por exemplo, um grau de iliteracia muito grande. Mas toda a gente canta, porque é muito mais fácil cantar. Só que cantar não serve para nada… Cantar serve para cantar nos hotéis, nos casamentos, nos restaurantes, nos bares… O que interessa é cantar o que se sente! E o que se escreve! E esse é o grande mercado. É isso! Portanto, quando um indivíduo provoca essa sinergia entre o seu próprio interior, o seu lado introspetivo, e o seu lado extrovertido, quando ele está nessa linha, como é o caso do Mark Ronson, e de muitos outros, como o [Leonard] Choen, o Sérgio Godinho, o [Bruce] Springsteen, o [Jorge] Palma. etc…. O Palma funciona porque falta espiritualidade na Cultura, diria, no mundo inteiro. Falta espiritualidade. A fasquia dos programas de televisão baixou, a indústria mediática baixou a sua própria fasquia, já não se consegue ir mais baixo… Talvez fruto da profundíssima crise económica e financeira, como nos anos ‘20 do século passado, haja uma fuga para um universo absolutamente estéril.

Fácil. Imediato…

Fácil, imediato, de rápida compensação, quase uma espécie de… O mercado da indústria é quase comparável àquelas drogas fáceis, não é…? Batem num instante, mas depois também têm uma ressaca… E depois é preciso outra, e outra, e outra… Por isso é que esses produtos não duram muito tempo. A verdadeira Arte, essa, fica cá. Porque é que o Cohen enche três Pavilhões Atlânticos? Em três anos consecutivos? E quanto mais vezes viesse cá, mais enchia… E o [Charles] Aznavour… Apesar da sua idade, 80 anos, 90 anos, tem uma genuinidade artística brutal, e as pessoas precisam dessa espiritualidade. Por muito que custe à própria Igreja aceitá-lo, a Arte é a única alternativa a Deus. E portanto se tanta gente se revê na luz divina, eu diria que mais gente ainda se revê na luz da Arte. É um foco, como dizias e bem, de paz, de estabilidade, de agregação, de coesão e de agregação nacional, porque a Arte é permanentemente utilizada como bandeira dos países, e bem. Por exemplo, a Rússia afirma-se identitariamente num mundo onde perdeu força geopolítica pela sua identidade cultural, pela sua herança, – dos clássicos dos [Lev] Tolstoi, dos [Fiódor] Dostoievski, dos [Piotr] Tchaikovsky – até à contemporaneidade e essa é uma das maneiras de agregar o país.

Uma bandeira?

Também é, mas não no sentido negativo. Um país tão grande como a Rússia, com uma capital tão distante dos seus extremos, da Sibéria até ao mar Báltico, tem como uma das formas de homogeneidade, de agregação nacional, de identidade, a sua Língua, a sua Arte, que geram uma sensação de conforto, de pertença a alguma coisa. A Arte tem essa espiritualidade de alternativa a Deus.

Aproveitando o gancho da facilidade e de a televisão ter descido a fasquia. Os programas de divulgação de talento serão parasitas, no sentido em que o seu verdadeiro propósito é mais a conquista da audiência do que propriamente a busca do talento?

Não diria parasitas. São programas de televisão e os programas de televisão cumprem uma função: entretenimento.

Costuma vê-los?

Não. Eu vejo coisas atípicas. Telejornais, documentários e filmes. Basicamente é o que vejo.

De qualquer forma, tem opinião sobre os programas de TV que são de entretenimento.

Sim. Cumprem o papel deles. São muito bem feitos, estão muito bem produzidos.

Formatados.

É um template, uma chancela que já vem ensaiada de muitos países. Todavia, na realidade, a verdade para com os concorrentes é nula. E o resultado é que, em dez ou 15 anos desses programas, não há… Quer dizer, “vem aí a próxima estrela de Portugal”!!! E depois? Talvez o grande problema desses programas seja a expectativa que cria junto dos concorrentes. E nalguns casos…

Nesse sentido, e rejeitando o termo parasitismo, aceita o termo rapina?

As pessoas quando lá estão, nesses programas, de facto acreditam genuinamente que aquilo é uma janela aberta a uma oportunidade. Se as televisões se aproveitam disso ou não, não sei. Sei que aquilo é bem feito, e que é música que ali está a ser feita. A grande questão é outra, e disse-o há pouco: se houvesse programas de autoria, e se de repente se revelasse um autor, que toca e canta, e a sua canção original fosse um êxito naquele domingo à noite…

Há o exemplo do miúdo de 16 anos, Diogo Valente, o D8, no Factor X.

Sim, exatamente. Mas era um nicho muito específico, o rap. Não era canção, era rap.

Qual é a diferença?

A canção é muito mais abrangente do que o rap. Portanto, se houvesse um programa de writing talent [talento para escrever] em vez de singing talent [talento para cantar], acredito que talvez se descobrisse uma estrela, porque quem faz um êxito num domingo certamente tem lá centelha. Só que o que se passa em relação a estes programas é que são entretenimento, e os concorrentes que lá vão estão conscientes disso, jogam as regras do jogo e apostam num tabuleiro onde podem ganhar ou podem perder.

O mecanismo do entretenimento é diferente do da política?

Acho que a política aprendeu muito com o entretenimento.

Mas não o assume.

Não assume, não. Há uma relação unívoca, porque o entretenimento não tem nada para aprender com a política. Acho eu. Mas a política e o entretenimento sempre andaram de mãos dadas… Não é uma novidade. A política tem um lado de entretenimento, sim.

Quem não aparece nos media não existe.

Nesta época da comunicação, os políticos só existem aos olhos do público se aparecerem. Os governantes existem se aparecerem nas televisões por boas razões; se for por más razões desejariam não aparecer. Hoje em dia, os governantes têm um batalhão de assessores de imprensa, porque faz sentido chamar a imprensa para ela estar presente nos corta-fitas, nas coisas que eles acham que são importantes. A grande questão é se vocês, jornalistas, vão atrás desse jogo. Portanto, os media não são também entretenimento? A resposta está nas vossas mãos.

Que é que acha do que vê?

Do que vejo nos telejornais, é que há demasiados políticos a cortar demasiadas fitas. E isto faz-me lembrar muito os telejornais do pré 25 de Abril, em que havia uma notícia e depois os corta-fitas, o chamado Portugal sentado… Um discurso… E às vezes os telejornais têm um alinhamento muito grande de entretenimento e a Política é a arte suprema do entretenimento, a arte suprema de manter em suspense dez ou 11 milhões de portugueses à espera e um desfecho melhor.

Num sentido pejorativo: música.

Pois, não queria usar a música para…

Seria sacrilégio…

Mas a classe não tem sabido defender a dignidade inerente aos cargos para os quais tem sido eleita, é verdade, temos permitido demasiadas vezes sermos governados por pessoas em quem nós votámos e que têm de alguma forma usurpado o sentido do nosso voto.

E esse é em consciência?

É um voto de bondade. O povo vota por bondade, não vota por interesse. Bem, há o interesse em melhorar a condição de vida. As pessoas votam no partido em que acreditam mais e a isto chama-se genuinidade. As pessoas são boas.

Nos partidos ou nas caras à frente dos partidos, naquele momento?

Votam, sim. Mas há muitos que cumprem, não se pode generalizar. Há muitos que cumprem, que são honestos. Há muitos que são ótimos gestores antes de entrarem no aparelho partidário, que obedece a uma agenda própria e não propriamente à agenda local, regional, nacional… E portanto há uma vontade de mudar as coisas, que se expressa no voto para melhorar as suas condições de vida, estradas, acessos, redes de esgotos, saúde pública, educação, seja o que for. E os políticos depois não têm contribuído para melhorar a sua própria imagem… E agora a banca!

Hoje, não é tudo a mesma coisa?

Bem, o Poder e a Finança… Neste conceito de Democracia – inventado pelos gregos –, em que na realidade elegemos os nossos próprios representantes, a promiscuidade entre Finança e Poder sempre existiu. A Finança substituiu o Clérigo no poder. Emaranhou-se no Poder e já percebeu que não precisa da Democracia para reinar, e esse é o grande drama.

Vivemos numa ditadura económica?

Numa Democracia aparente, porque votamos em pessoas que eram de alguma forma barrigas de aluguer de interesses económicos. Isso está patente, sobretudo neste Governo. Acho que toda a gente consegue ver…

Em que medida?

Para começar: não é do interesse nacional vender a TAP. Não é! Do interesse nacional é reter a TAP, como seria reter a REN, a EDP, os CTT. Seria… São setores estratégicos de interesse nacional. Portugal, Grécia, Irlanda, Espanha, que são uma espécie de airbag do sistema financeiro, uma espécie de injeção de dinheiro no Deutsche Bank e no Banco Central Europeu. Mais nada! Estamos a capitalizar, na realidade, o Deutsche Bank, é o que nós estamos a fazer. E esta política de austeridade, em resultado de uma situação em que nós não tivemos culpa. E é bom que os portugueses entendam de uma vez por todas que a culpa não é do senhor Luís e da dona Maria, que quiseram trocar de Fiat Punto. Fez-se o 25 de Abril para arrancar o País das mãos da tirania da Finança e da ignorância e, passados 40 e poucos anos, depois de assentar o lodo, a Finança e a ignorância, afinal, estão aí… São os mesmos… São os mesmos, literalmente; as mesmas pessoas, as mesmas caras… Mas não é muito cordial generalizar isto para os políticos.

Os políticos do entretenimento?

As pseudo-elites que nos lideraram não foram muito capazes de exercer uma mudança efetiva e transparente – está à vista o resultado. Se fosse, não estávamos com uma mão atrás e outra à frente. E socorreram-se em muitos casos de um branqueamento via, muitas vezes, imprensa, via media; podemos acrescentar um terceiro Poder, que é esta depravação da política-entretenimento que precisa muito de manipular os meios de comunicação social e de difundir a mentira. Chama-se a isto…

Propaganda.

Ora bem.

Neste contexto, que herança é possível deixarmos aos nossos filhos? O que é que lhes vai cair em cima?

É óbvio o que lhes vai cair em cima… Ontem li uma notícia chocante: em seis anos, emigraram dez mil enfermeiros! Este número vale o que vale. É um número. Dez mil, só na classe dos enfermeiros. Vamos usar este cenário como painel. Ora, quanto dinheiro gastámos nós, entre Estado e famílias, para formar dez mil enfermeiros? Milhões, milhares de milhões de euros! Formámos mão de obra especializadíssima – porque um enfermeiro não se forma do dia para a noite, nem em quatro anos, nem em cinco, nem em sete; forma-se desde o pré-primário até ao mestrado; quanto tempo é que isso é?, 18, 19 anos – que é hipotecada sem querermos saber destas horas investidas na formação desta gente, nas cantinas, em tudo, na sua própria formação, em tudo. Nos ordenados que se pagaram aos professores, em tudo. Na manutenção dos edifícios onde eles andaram a estudar. E para onde é que eles foram? Para onde é que eles foram investir esse know how? Inglaterra, França, Bélgica, Dinamarca – países que absorveram essa mão de obra qualificada. E esses países são, esses sim, parasitas. Estão a sugar a mão de obra especializada, sem investimento. E a crescer, e de que maneira, porque têm mais-valias ao nível da indústria do conhecimento, a grande indústria de futuro. Portanto, para responder à pergunta…

Que herança vamos deixar aos nossos filhos?

Permanecer em Portugal e investir na indústria do conhecimento, porque os países só crescem se houver crescimento tecnológico e de inovação. Essa foi a grande da economia pós-crise na América: o conhecimento, através da tecnologia, das telecomunicações. Essa foi a grande alavanca. Foram empresas como Apple, Yahoo!, Facebook ou Google que puxaram a economia para cima – a indústria do conhecimento. E essa indústria só existe se tiver havido investimento no indivíduo desde os cinco, sete anos, dando-lhe todas as ferramentas, desde o livro de pano para ele aprender a ler à chave de fendas para ele aprender a mexer no transístor, etc., e depois abdicar dele na fase final? Parece-me perdulário, completamente!

Então, o que é que devemos deixar aos nossos filhos?

Para além deste profundíssimo erro, desta profundíssima dívida que eles vão ter de pagar, porque vão ter de pagar, o que lhes podemos deixar é dizer-lhes claramente – e os livros de História vão ser claros a apontar quem cometeu esses erros, que era quem nos estava a governar… a não ser que haja alguém a manipular a História, o que também não seria novidade…

George Orwell e o Grande Irmão, de 1984, em que a História era revista, refeita para não desmentir o Poder…

Claro! Sim, pode haver quem reveja os livros e depois venha dizer que o Governo anterior foi salvador, e que o de antes também, enfim… Mas a realidade é que alguém terá de se perguntar, no futuro, se estava tudo a dormir em Portugal. Não havia ninguém que se levantasse contra isto? E a resposta esteve, por exemplo, e para recordar, no milhão que se levantou e saiu para a rua [Que Se Lixe a Troika] e que nenhum partido político soube capitalizar porque a uns não interessava e outros não perceberam que aquele fenómeno genuíno…

E apolítico. Transversal e apolítico.

Não, não, não. Foram os políticos que foram incompetentes! Aquele movimento de descontentamento era genuíno, que poderia ter sido capitalizado à Direita ou à Esquerda, não foi.

Terá sido por pudor?

Não foi por pudor. Foi incompetência! Quem é que deveria ter capitalizado com aquele descontentamento? Em primeiro lugar, o PS, como é evidente, como partido mais bem colocado na oposição…

E não o fez por incompetência?

O PS tinha uma liderança fraquíssima! Felizmente, mudou. E portanto, não capitalizou. Pelo contrário, foi envolvido. Deixou que o apontassem como responsável pela situação… Mas os partidos à Esquerda deveriam ter sabido capitalizar com aquele movimento, que foi acéfalo.

Mais uma vez, o que é que devemos deixar à geração futura?

A certeza de que houve quem tivesse lutado. Cada um deles vai pagar uma fortuna, 53% do que vier a ganhar, mas com a certeza de que houve quem não se tivesse conformado, e quem tivesse lutado.

Serão eles os juízes…

Serão eles os juízes da História.

E quem é que toma conta de nós? Hoje?

Em primeiro lugar, nós próprios, que somos os nossos melhores amigos. E a família, que é um valor fundamental em tempos de crise. A identidade também. O sentido de pertença. Emigramos – eu dei o exemplo há bocado dos enfermeiros, mas a questão é que foram todas as profissões técnicas e superiores. Mas emigramos e levamos connosco a nossa identidade e ela toma conta de nós, este sentido de que eu tenho um chão, a pertença.

Chão. A palavra está muito presente no seu último álbum.

É. É uma palavra lindíssima. Lindíssima.

Nesse álbum há um outro retrato: “Um homem a trabalhar / E mais de vinte a dirigir […] / Até que o homem se fartou”.

Sim, sim. É um retrato irónico que ilustra exatamente aquilo de que estava a falar. A canção é a Todos Lá Para Trás, que saiu antes do movimento Que Se Lixe a Troika, que levou um milhão à rua, é isso.

Podia, aliás, ter sido adotada como banda sonora do movimento.

Podia, e é a banda sonora de muita gente. A questão é: eu continuo a acreditar na honestidade de uma futura elite. É esse sinal de esperança que é preciso ter, o de uma futura verdadeira elite que não olhe para o seu umbigo, para a sua conta bancária, que não queira ter uma quinta no Alentejo e uma casa nas Ilhas Caimão. Uma elite que se esteja a marimbar nos veleiros. Esta elite é demasiado mesquinha. Falta-lhe espiritualidade e tem avidez por materialidade e por isso é tão facilmente corruptível. Mais uma vez: a Arte é a salvação. Porque todos aqueles que são espiritualmente conectados a qualquer coisa, e é óbvio que não são conectados a uma fé, não teriam aceitado o que aceitaram. Como é que viverão com a sua consciência?

Se calhar, bem.

Se calhar, bem.

“Ninguém sai de onde tem paz.” Por mais longe que se vá buscar o pão?

Pois… Ora, essa é… exato! Claro que essa frase é aspiracional. Ninguém sai de onde tem paz, a não ser que a paz acabe. E quando é que a paz acaba? Quando se tem fome. Não há paz com fome. Evidentemente que esta esta geração que vai vai porque vai empurrada. Eu até admito que seja uma grande experiência. Sim, é. Eu fi-la! Estive fora muito tempo. Ganhei imenso com essa experiência. Mas fui porque quis!

Não foi uma fuga.

Não! Foi uma fuga de dentro! Foi voluntária!

Foi uma busca.

Foi uma busca, exatamente.

“Amar é nunca prender.” O que é que nos pode prender, senão o amor?

Sim, essa frase é do meu último álbum.

É.

No Tudo o Que Eu Te Dou eu tenho uma outra frase idêntica: mata-me de amor, dá-me liberdade. Mas não há amor sem liberdade. E também não há Deus sem liberdade.

Texto: Luís Martins | Fotos: João Ribeiro

Impala Instagram


RELACIONADOS