Desde quando damos brinquedos às crianças no Natal?
Os presentes de Natal são uma invenção da sociedade de consumo? Já na Grécia antiga as crianças recebiam brinquedos no final do ano. Eis uma pequena viagem histórica.
A chegada do Natal leva grande parte de nós a procurar brinquedos para dar aos filhos – nossos ou aos dos nossos familiares e amigos. “Antigamente”, algumas pessoas só recebiam uma laranja no Natal. Será que os brinquedos de Natal são recentes e eram apenas reservados aos mais ricos?
“Para responder a essa pergunta, devemos dividi-la em vários pontos”, diz Michael Manson, historiador e professor emérito em Ciências da Educação da Universidade Sorbonne. “Desde quando damos brinquedos no final do ano, a que horas e em que feriados? Quem deu brinquedos antes de criarmos o Pai Natal? E por que – e como – se tornou no distribuidor de presentes?”
Para vermos as coisas com mais clareza, “devemos recuar mais de dois milénios e refazer o percurso da oferta de brinquedos, desde a Grécia antiga” até aos dias de hoje.
Desde a Antiguidade, os brinquedos no Natal
“Quando se era criança em Atenas, no século V a.C., podia receber-se brinquedos no fim do ano – ou seja, em fevereiro, no calendário da época.” Os brinquedos eram oferecidos “por ocasião de duas festas, as Anthesteries (festa de Dionísio) e as Diasies (festa de Zeus), em memória desses deuses, que receberam brinquedos na infância.” A partir de então, os brinquedos “tornaram-se comerciais”, como atesta “Aristófanes, em ‘As Nuvens’, peça encenada em 423 a.C.”.
Os pequenos romanos recebiam-nos em dezembro, num dia de Saturnália – “a que se chamava Sigillaria”. “Jogava-se com nozes, ancestrais dos nossos berlindes, naquele período.” No Ano Novo, havia “ofertas em dinheiro, que acompanham os desejos de bom Ano Novo, uma celebração social e não familiar”.
O cristianismo antigo “não está na origem da oferta de brinquedos às crianças durante a Festa da Natividade”, contrariamente ao que supomos. “A celebração nesta data foi fixada apenas no século IV – período em que o 25 de dezembro estava em ‘competição’ com o 6 de janeiro, da Epifania.” O carácter sagrado destas festas “não combinava bem com a frivolidade dos brinquedos”, situa Manson.
“Até que a criança se tornasse importante [no período das festividades natalícias], foram necessários longos séculos de humanização da Sagrada Família, o que reduziria a distância entre o sagrado e o profano. Isto é evidenciado pelo surgimento de um culto a São José a tornar-se num pai ‘moderno’ do século XV, a lavar as fraldas do filho e a cozinhar.”
Durante o Renascimento, “as celebrações de fim de ano deram mais espaço às crianças, na Festa dos Santos Inocentes (28 de dezembro), na de São Nicolau (6 de dezembro) e no Ano Novo.
De brinquedos a presentes
Foi apenas no século XVI que um elemento fundamental pareceu tomar forma: “os doadores sagrados, fora da família, ofereciam brinquedos às crianças, e os pais desapareciam atrás deles”. “Devemos compreender a importância deste facto: ao afastarem-se, os pais aliviam os filhos do peso do reconhecimento, tornando o presente ‘puro’, que não espera nada em troca.”
O fenómeno “não se generalizou nem existiu em todo o lado naquele século XVI; “ele tinha acabado de surgir; e os doadores sagrados “estavam longe de competir com os pais que ofereciam presentes, principalmente na passagem de ano”. Comecemos com São Nicolau e o Menino Jesus.
Testemunhos da primeira metade do século XVI contam-nos que São Nicolau levava brinquedos e doces às crianças e mesmo Martinho Lutero, que se opunha ao culto dos santos, anotou nas suas despesas de dezembro de 1535 a compra de presentes para seus filhos e servos na festa de São Nicolau. Mesmo em países protestantes, como a Holanda, “o culto a este santo persistiu e quatro pinturas de Jan Steen e Richard Brackenburg, situadas entre 1665 e 1685″, testemunham “uma celebração familiar onde já encontramos parte dos rituais natalinos: a família reunida e os sapatos junto à chaminé por onde entram os brinquedos”.
Outros países protestantes, como a Alemanha e a Suíça, e a região da Alsácia, por exemplo, “fazem do Menino Jesus o doador”. Os arquivos de Estrasburgo mostram-nos em 1570, num sermão de Johannes Flinner, e a cidade suprimiu o Dia de São Nicolau, mantendo o mercado de 5 a 6 de dezembro antes de estabelecer o mercado de Natal, o Christkindelmarkt, na Place de the Cathedral.
O pastor Joseph Conrad Dannhauer refere-se a esses presentes às crianças como “uma linda boneca e coisas semelhantes” e atesta a presença da árvore em que “estão pendurados bonecos e doces”, “indignando-se com o facto de as orações das crianças serem preenchidas com anseios muito materiais”. “A celebração familiar, mais secular que religiosa, não estava longe”, situa Michael Manson.
Na Europa católica dos séculos XVII e XVIII, “o momento privilegiado para oferecer presentes em benefício da família e dos filhos era o Ano Novo”. “Os relatos reais atestam-no, como os de Maris de Médicis, em 1556, e o testemunho de Héroard sobre os presentes recebidos pelo pequeno Luís XIII.”
O costume “também existia entre a classe média baixa”. Nas grandes cidades, no fim do ano, barracas nas calçadas ofereciam pequenos brinquedos e doces às crianças. Assim, “a oferta de brinquedos no Natal anda de mãos dadas com o comércio de brinquedos” e isto “aumenta à medida que avança a sensibilidade à infância”.
No século XIX, muitos doadores
A doação de brinquedos às crianças mantém-se “principalmente na passagem de ano”, embora São Nicolau esteja presente. Vão no entanto surgindo “novos doadores, ligados às culturas populares, como Befana, uma bruxa que vem à Epifania”, e “os Três Reis Magos, em Espanha”. Nesta altura, “surgem personificações profanas, pouco documentadas por trabalhos sérios: Padre Janvier para o Ano Novo e Pai Natal”.
O Pai Natal é representado como um homenzinho roliço, de fato encarnado com punhos de pele branca, residente no Polo Norte, muito humano, sereno, tranquilizador, alegre, portador de valores positivos, familiares e universais “que convidam todas as camadas sociais para a festa”. “A sua imagem consolidou-se no final do século XIX em Inglaterra e no início do XX em França e passa a prevalecer sobre os antigos doadores “porque permite um eficaz sincretismo [combinação de princípios de diversas doutrinas filosóficas ou religiosas].”
O sucesso do Natal “só pode ser compreendido porque se baseia na evolução do lugar da criança na família e na sociedade e no crescimento da indústria dos brinquedos reforçados pela revolução comercial das lojas comerciais”. Assim, “o Ano Novo tornou-se um festival comercial de brinquedos, desde os pequenos mercados (entre 1815-1835) até ao surgimento de lojas especializadas em brinquedos, a partir de 1880”.
Foi nestes anos de 1880 que o Natal “se consolidou de facto como uma celebração onde eram dados brinquedos às crianças, ainda que os comerciantes visassem um período mais amplo, incluindo o Natal e o Ano Novo”. “Os cartazes, os catálogos das lojas distribuídos às centenas de milhares de exemplares, as montras de Natal, tudo isto penetra na cultura infantil, ajudando a doutrinar os jovens consumidores”, considera o historiador da Sorbone. Trata-se, no fundo, de “uma democratização do modelo burguês de consumo, proposto como uma nova arte de viver, a ‘cultura de compras'”.
O consumo de brinquedos integra-se na encenação da festa religiosa transformada em mito, mas esta festa comercial “não substitui a celebração familiar”. “Contribui para ela, porque sem o sistema de comércio o sistema de doação não poderia desenvolver-se.”
Para que a oferta de brinquedos às crianças se tornasse no coração do Natal moderno, foi necessária “uma transformação da nossa imaginação, que devemos em grande parte ao romantismo alemão transmitido por Baudelaire e Victor Hugo”. “Quando Jean Valjean dá a Cosette a boneca mais linda da casinha de brinquedos é o prazer da criança que está no centro deste Natal”, verifica Michael Manson, historiador e professor emérito em Ciências da Educação da Universidade Sorbonne.
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