Animais de raças autóctones são monumentos a preservar numa quinta de Coimbra
Na Quinta do Zorro, em Coimbra, trabalha-se desde 2017 com raças portuguesas ameaçadas. Numa colina íngreme na zona rural de Coimbra, porcos, galinhas e cabras autóctones são vistos como monumentos genéticos a precisar de preservação.

Tudo começou um pouco por acaso, quando Paulo e Elisabete Guerra decidiram pegar em terrenos da família que estavam abandonados, numa zona de grande declive junto à fronteira entre Coimbra e Penacova, na localidade do Zorro.
A ideia inicial seria pôr apenas galinhas: “Nem sabíamos que havia raças autóctones”, conta Elisabete à agência Lusa.
Na pesquisa, depararam-se com informação sobre as quatro raças portuguesas, todas elas ameaçadas, e decidiram apostar nessas galinhas (amarela, pedrês, preta lusitânica e branca).
Para ajudar na limpeza dos terrenos, juntaram depois umas cabras serpentinas, também ameaçadas, e, mais tarde, chegou o porco malhado de Alcobaça, espécie considerada em risco de extinção.
Se, ao início, Paulo Guerra ainda dividia o trabalho da quinta com o seu emprego a vender e desenhar cozinhas, com a pandemia passou a dedicar-se por inteiro ao projeto, enquanto a mulher mantém a sua profissão no serviço médico-veterinário da Câmara de Coimbra.
Paulo não se arrepende de ter trocado aa venda de cozinhas por dias sem férias, nem folgas, ora com o rebanho de cabras pela Serra do Carvalho, ora a tratar das galinhas e dos porcos.
Apesar disso, admite que a escolha de raças autóctones torna o projeto mais difícil, mais duro e cheio de portas fechadas.
“Se trabalhar na agricultura é difícil, trabalhar da forma como nós trabalhamos ainda é mais difícil, porque as raças autóctones têm uma série de condicionantes, nomeadamente o crescimento lento”, aponta.
Além da escolha de raças com menor capacidade de produção, há também o respeito pela ordem natural das coisas na Quinta do Zorro: os porcos não ficam fechados, as cabras alimentam-se do pasto e, chegando o inverno, aceita-se que as galinhas deixem de pôr ovos (uma luz na capoeira bastaria para as induzir ao contrário).
Há ainda uma especial atenção por cada animal, sempre preocupados com o seu bem-estar.
“Tentamos fazer tudo para que os animais, enquanto estão na quinta, tenham as melhores condições possível e possam ter uma vida digna”, disse Paulo Serra, que falou à Lusa junto ao Mondego, onde vigia o rebanho de cerca de 50 cabras serpentinas que comiam a erva de um campo de futebol abandonado.
Apesar de ter abraçado por completo o projeto, Paulo Guerra admite que todos os dias é um desafio.
Em 2024, perderam cerca de 200 galinhas — a grande maioria do efetivo – em ataques de saca-rabos e raposas, que se aproximaram das povoações face aos incêndios.
Neste momento, ainda estão a tentar reerguer-se das perdas e a alterar alguns procedimentos. Tiveram de fortificar as cercas e as galinhas passaram a estar fechadas à noite, tendo ainda outras formas de segurança, como uma fraca (galinha de Angola) num dos bandos — funciona como um ruidoso alarme ao mínimo sinal de ameaça — e gansos, uma espécie de cães de guarda.
Além disso, há todo um caminho ainda a ser feito para a valorização das raças autóctones.
Se no caso dos porcos ou vacas há algumas raças portuguesas afamadas, nas galinhas o mesmo não acontece, apesar de a carne ser “completamente diferenciada”, nota Paulo, contando que em 2024 levou uns galos para serem provados por chefes de cozinha no evento Coimbra Região Gastronómica e ficaram rendidos.
“Os chefes até poderiam querer fazer encomenda, mas nós não podemos comercializar”, lamentou.
Ao contrário dos porcos e das cabras, o matadouro mais perto para aves fica em Torres Vedras, tornando impossível a comercialização de galinhas para alimentar um setor da restauração cada vez mais atento a produtos diferentes.
“Está tudo direcionado para a grande produção. E deveria haver mecanismos para os pequenos produtores conseguirem comercializar”, lamenta.
A história de todas as raças que criam é praticamente a mesma: perderam preponderância para animais estrangeiros com maior capacidade de produção. O porco malhado de Alcobaça é um bom exemplo disso mesmo — seria a raça mais comum na região Centro, usada para o leitão assado, mas não conseguiu competir com raças de fora.
“Se posso ter um porco que produz 17 ou 20 leitões descarto aquele que dá oito ou nove”, disse Paulo.
Na quinta, estão rendidos a esta raça pouco conhecida.
“Eu costumo dizer que tenho cães gigantes”, conta o produtor.
Mais tarde, atesta a simpatia dos porcos, que o rodeiam assim que os chama e que se deliciam com as festas que lhes dá no lombo.
Além do bem-estar animal, há também um cuidado com o património genético.
Paulo Serra apenas critica as “muitas paredes e muitos muros” que condicionam a vertente do negócio, que neste momento ainda não é sustentável.
“Não se pode comparar uma exploração deste género com uma produção intensiva. As coisas deviam estar adaptadas a cada caso, mas as regras e exigências são iguais para pequenos ou grandes produtores”, acrescentou Elisabete.
Paulo aponta para a falta de apoios diferenciados para quem aposta nestes animais, todos eles ameaçados.
“Nós não preservamos um monumento. Isto não é uma igreja, mas é um monumento vivo, é uma história e nós temos esse papel de a preservar. São as raças que temos e que as pessoas nem conhecem”, vincou.
Entretanto, mantêm-se na luta firme de preservação destas raças, num projeto em “construção há muito tempo”, com vários reveses, mas feito com “muito amor e respeito” pelos animais, à espera de dias melhores e de menos portas que ainda teimam em estar fechadas.
*** João Gaspar (texto) e Paulo Novais (fotos), da agência Lusa ***
JGA // SSS
By Impala News / Lusa
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