O apagão e as lições do colapso do sistema elétrico ibérico
Espanha e Portugal entraram em colapso devido à falha do sistema elétrico. As probabilidades deste apagão eram extremamente baixas e, colocando de lado as especulações sobre as causas, o episódio é extremamente grave devido à convulsão social que causa e aos prejuízos económicos

Em 28 de abril de 2025, ocorreu um fato sem precedentes: Espanha e Portugal entraram em colapso devido à falha do sistema elétrico. As probabilidades deste apagão “eram extremamente baixas e, colocando de lado as especulações sobre as causas, o episódio é extremamente grave devido à convulsão social que causa e aos prejuízos económicos a todos os níveis”, analisa Carlos Gutiérrez Hita, professor titular de Economia Industrial (transporte, energia, telecomunicações) da Universidade Miguel Hernández.
O mercado de eletricidade na Península Ibérica
A eletricidade é gerada através de recursos renováveis – intermitentes e variáveis –, recursos fósseis (com as centrais térmicas de vários tipos) e energia nuclear (em Espanha). Um operador de sistema “centraliza as ofertas de energia dos geradores (uma quantidade a um preço por um período específico), criando uma oferta agregada que responde aos requisitos de procura das empresas de distribuição”. Em última análise, “comercializam a eletricidade diretamente ou vendem-na a empresas independentes (em muitos casos, pequenas empresas locais ou regionais)”, explica Gutiérrez Hita.
Estas compensações de mercado ocorrem “com 24 horas de antecedência (o chamado mercado do dia seguinte), deixando um mercado diário (à vista) aberto a flutuações específicas que evitam qualquer queda no sistema”. Além disto, “existem contratos de médio e longo prazo que os produtores concordam em cumprir, fornecendo a eletricidade com a qual se comprometeram em cada período”. “Tudo isto gera uma mistura de preços no ‘atacado’ que o sistema deve gerir, enquanto a REDEIA espanhola e a REN portuguesa distribuem a energia produzida.”
Energia renovável sobrecarrega o sistema
Além dos preços no atacado e das taxas variáveis para o consumidor final, o aumento da energia renovável “está, paradoxalmente, a desestabilizar o sistema”. De facto, a energia gerada a partir de recursos renováveis ”representa, em média, mais da metade da produção total e é benigna em muitos aspetos”: os custos de instalação estão a cair vertiginosamente, é ecologicamente correta e praticamente não requer manutenção”, assinala Gutiérrez Hita.
Porém, as centrais de produção a combustíveis fósseis “são necessárias para qualquer eventualidade durante o dia (baixo rendimento das instalações fotovoltaicas, vento fraco, secas, etc.) e nas horas de escuridão (pela ausência de energia fotovoltaica) e por isso devem ser remuneradas em todos os momentos, o que contribui para elevar substancialmente o preço de mercado, apesar de as renováveis o baixarem”.
Por outro lado, o aumento da entrada de energia fotovoltaica e eólica na rede “pode provocar fortes oscilações de energia nas redes atuais, que não estão preparadas para transportar quantidades excessivas de energia em tempo útil (uma das causas consideradas para o apagão)”. Por isso, “o sistema elimina-as do fornecimento”.
Entretanto, a rede “deve gerir os fluxos de energia em ambas as direções devido ao excesso de descargas de pequenos produtores de energia renovável (principalmente residências), o que representa um esforço adicional para a rede, a nível físico, e para a administração do sistema, a nível burocrático, o que afeta a sua resiliência”, alerta Gutiérrez Hita.
Paralelamente, o acelerado processo de encerramento de centrais nucleares em Espanha “terá um impacto negativo na produção, facto que deverá ser justificado não só a nível técnico, como também a nível social, uma vez que a União Europeia declarou a a produção nuclear como energia limpa”.
Procura dinâmica e flutuante
Todos estes argumentos levantam uma questão: o atual sistema de produção pode responder às necessidades de uma procura cada vez mais ávida e flutuante? A resposta imediata é “não”. Porque “não só a procura por energia elétrica está cada vez mais dinâmica e flutuante – facto acentuado pelo aumento de servidores e ‘data centers’ que alimentam a inteligência artificial (IA) –, como a produção de energia elétrica está também mais diversificada na sua composição e origem”. Ou seja, o custo de produção e transmissão de um quilowatt está dependente da forma como é produzido – “inteiramente com energia renovável e nuclear, em centrais térmicas ou dependentes do tempo de produção e da distância percorrida na rede entre a fonte e o destino”.
A unificação dos sistemas de produção de eletricidade e a transferência de energia entre sistemas nacionais é uma tendência na UE, onde já existem mercados unificados como o Mibel (Mercado Ibérico de Eletricidade, que inclui Espanha e Portugal) ou o NordPool (países nórdicos), “mas sempre com permeabilidade a outras redes (trocas de energia entre mercados vizinhos)”. Existem mesmo projetos que sugerem “ir mais além e centralizar o fornecimento de energia a nível europeu”.
“A vantagem notável de um sistema centralizado de fornecimento energético é a diversificação da produção, permitindo maior flexibilidade não só ao nível das centrais produtoras, como também em termos dos recursos utilizados.” Neste sentido, “a racionalização do sistema é potenciada pela maior eficiência técnica e pela capacidade de oferecer preços finais mais próximos do custo marginal de produção, reduzindo, desta forma, o poder de mercado das produtoras”.
Este sistema, no entanto, “aumenta também o risco de ‘infeção’ no caso de qualquer choque negativo, como um ataque cibernético, um problema técnico grave ou um desastre natural”. Os eventos de 28 de abril “são exemplo claro desta tendência: a quase totalidade de Espanha e Portugal, e algumas áreas do sudoeste francês, foi afetada”. O desligamento do subsistema ibérico “impediu cortes de energia no resto da Europa”, mas “acabou simultaneamente por impedir transferências de energia de outras regiões europeias para a área afetada”.
Embora o mercado Mibel e as transferências de energia com a vizinha França “garantam fornecimento de eletricidade mais eficiente e seguro, se ocorrer uma falha maciça no sistema, as consequências são imprevisíveis”.
Futuro passará por um sistema misto
O que até agora se sabe levanta questões sobre “o futuro da produção de eletricidade e como devemos ser distribui-la e comercializá-la”. Aumentar a produção de energia fora do sistema centralizado – com unidades de produção e consumo em pequena escala – “parece uma boa forma de gerir a procura, tornando-a menos vulnerável a um choque ou apagão generalizado e transferindo a gestão de recursos para o consumidor, o que aumenta a de facto a eficiência”.
Ao mesmo tempo, “deve existir um sistema centralizado para garantir um fornecimento suficiente para certas atividades económicas com alta procura de eletricidade, para garantir a operação de redes como ferrovias e telefones e ainda por razões de precaução”.
O aumento da procura e as tecnologias de produção de energia renovável mais eficazes devem criar um mercado de eletricidade “com menos energia para as empresas produtoras, racionalização das redes de distribuição e maior equilíbrio entre a energia produzida centralmente e as contribuições para o sistema provenientes da produção excedente dos consumidores finais”. Isto requer “melhorar tanto a rede física quanto a arquitetura do sistema elétrico”, sinaliza o especialista.
O apagão ocorreu e a realidade “superou mais uma vez a ficção”. “O desafio de reformar o sistema elétrico deve ir além do debate político e tornar-se num plano de ação de curto prazo”, conclui Carlos Gutiérrez Hita, professor titular de Economia Industrial (transporte, energia, telecomunicações) da Universidade Miguel Hernández.
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