Um homem de 78 anos que estava internado no hospital de Abrantes desde janeiro acabou por falecer naquela unidade hospitalar, de doença não relacionada com Covid-19. Ainda assim, devido à pandemia, o homem “morreu sozinho” e a cerimónia fúnebre decorreu com apenas 10 pessoas, sendo que 4 delas pertenciam aos serviços funerários.
Nas redes sociais, o testemunho da nora, dá conta de dias difíceis nesta despedida atípica e reforça a necessidade de cumprir o isolamento social.
“O meu sogro morreu sozinho numa cama, no hospital de Abrantes… Estava internado desde janeiro devido a um AVC e depois já no hospital apanhou uma pneumonia que agravou substancialmente o seu estado de saúde… Durante todo esse tempo o meu marido e a minha cunhada foram incansáveis e todos os dias o visitaram no hospital. Mesmo apesar de não haver certezas, se dentro daquele corpo retorcido e mudo, mas que ainda reconhecíamos e que nos olhava e às vezes até sorria (ou assim o entendíamos), estaria uma alma ainda consciente de quem ali estava, com amor e angústia a olhar para ele, a dar-lhe a refeição (enquanto isso ainda foi possível), a dar-lhe afecto. Quando havia um ligeiro aperto da mão que ainda conseguia mexer, para o meu marido e a para a minha cunhada era uma lufada de esperança e de certeza, no coração, que o pai deles, lá fundo, os sabia ali com ele”, começa por contar.
Mas com a proliferação do vírus, os filhos deixaram de poder visitar o pai e passaram a receber notícias do seu estado de saúde através apenas dos enfermeiros ou médica responsável.
“Os enfermeiros e enfermeiras, @s auxiliares e a médica foram as únicas “visitas” que o meu sogro teve desde que chegou a Covid-19 e com ela o (necessário) estado de emergência. A eles só temos de agradecer por terem lá estado, não só pelos necessários cuidados de saúde, mas por terem sido o único conforto humano que o meu sogro terá recebido nos seus últimos dias”, lê-se.
O homem, que faleceu no dia 9 de abril, “morreu sozinho, sem a visita dos filhos, de outros familiares ou amigos…”.
“Morreu provavelmente sem saber que lá fora o mundo parou, que está virado ao contrário e que não tinha as visitas diárias de quem mais o amava, por causa de um bicho novo e altamente cruel que nos faz cumprir o maior paradoxo das nossas vidas: afastar como maior prova de amor. Ele não morreu de covid-19”, escreve Lígia Grilo num longo desabafo no Facebook.
A mulher refere ainda que o sogro “não pôde ser vestido com a sua última roupa e como mortalha teve um saco de plástico”. Devido às restrições ás cerimónias fúnebres, a urna não pôde ser aberta e no funeral estiveram apenas seis familiares.
“A urna veio à sua terra, que tanto adorava, apenas por excassas horas e sem poder haver velório ou ser aberta para uma despedida mais humana e como merecia… Não houve cortejo fúnebre a pé… Os nossos familiares e amigos não puderem vir confortar-nos… No cemitério apenas puderam estar 10 pessoas, sendo que 4 delas estavam a cumprir as suas funções (com os maiores respeitos, solenidade e dignidade). Apenas 6 pessoas de família directa puderem assistir a este ritual, que talvez hoje em dia não valorizemos como devíamos, mas que nos faz ter sentido de comunidade e de pertença; que faz de nós humanos e tudo o que isso realmente representa…”
Por fim, a mulher justifica o desabafo com a revolta de quem, nos dias de hoje, não respeita o isolamento social e as regras que o Covid-19 veio impor.
“Partilho convosco algo tão pessoal, para que possam perceber verdadeiramente a gravidade e crueldade da realidade que hoje vivemos. Revolta-me saber que ainda há quem se ache invencível e desvalorize as recomendações que nos são dadas. Revolta-me quem ainda desvalorize o que estamos a viver e ponha em risco outros. Da próxima vez que saírem de casa para nada, só porque está sol, só porque estão fartos de estar em casa, só porque… Lembrem-se deste testemunho.
Eu, nós somos alguém que vocês conhecem. Não acontece só aos outros e não é seguramente um problema só dos que estão infectados com o novo coronavírus. Acontece e afecta-nos a TOD@S, de formas que não esperamos, nem imaginamos… Nunca pensámos viver algo assim… É de uma crueldade e violência sem precedentes e até para se morrer estes são tempos indizíveis… Por isso, por favor, deixem de ser parvos e egoístas e fiquem em casa. Sejam responsáveis nas decisões que tomam, por vós e pelos outros”, termina.
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