Cidade ancestral cristã já conheceu os extremistas islâmicos e receia era pós-Assad

As igrejas de Maalula, uma cidade ancestral cristã síria, reabriram hoje, uma semana após o fim do regime de Bashar al-Assad, que traz um novo ciclo de incerteza aos seus habitantes e medo do regresso dos extremistas islâmicos.

Cidade ancestral cristã já conheceu os extremistas islâmicos e receia era pós-Assad

Às primeiras horas de uma manhã gelada, os sinos das igrejas ortodoxas e greco-católicas de uma das comunidades cristãs mais antigas do mundo tocaram a rebate, em simultâneo com o chamamento nos altifalantes da mesquita para a oração dos muçulmanos, que, ao contrário do resto do país, em Maalula estão em minoria.

Na pequena cidade de menos de dois mil habitantes, a cerca de 60 quilómetros a norte de Damasco e encravada a 1.500 metros de altitude num vale rochoso do Rif Dimashq, dezenas de fiéis confluem vagarosamente para o interior da Igreja de São Jorge, decorada com frescos de motivos bíblicos coloridos, mas que não chega a encher.

A missa de hoje vem carregada do simbolismo acrescido de ser a primeira desde a queda da dinastia Assad, que governou o país nas últimas décadas com mão de ferro, embora tolerasse a presença de confissões minoritárias e fomentasse divisões entre elas, antes de sucumbir no passado domingo à operação relâmpago de uma coligação de grupos de oposição armados. Nesse dia, enquanto o ex-Presidente sírio fugia para Moscovo, a maioria dos templos cristãos encerrou.

Nas forças de oposição vitoriosas, pontifica a Organização pela Libertação do Levante (Hayat Tahrir al-Sham (HTS), liderada por Abu al-Jolani, um homem com um passado ligado aos movimentos extremistas Estado Islâmico e Al-Qaida e ao seu grupo associado Frente al-Nusra, que os cristãos de Maalula conheceram bem, quando em 2013 foram expulsos pelos ‘jihadistas’ que procuravam depor Bashar al-Assad.

Mais de uma década depois, há uma sensação de ameaça entre os fiéis na Igreja de São Jorge, reunidos para a missa rezada em árabe, embora a maioria fale aramaico, a língua de Jesus, presidida pelo padre Jalel Razel, 58 anos: “Quando a guerra começou em 2011, os muçulmanos começaram a perseguir e a matar cristãos e agora temos esta situação nova e muito especial, tanto para uns como para os outros”, comenta à agência Lusa.

Neste ciclo histórico que agora começou na Síria, “é claro que as pessoas têm memória e têm medo”, segundo o religioso natural de Alepo, no norte do país, e todas as fontes de receio apontam para o retorno da violência dos grupos radicais catalogados como terroristas pelas potências ocidentais e que no passado tentaram impor na Síria um estado islâmico e suas leis baseadas no Corão.

O padre Razel recorda que, quando os combatentes da Frente al-Nusra entraram em Maalula, em outubro de 2013, em plena guerra civil, mais de uma dezena de pessoas foram mortas e muitas outras ficaram feridas, levando à fuga da população, “incluindo os muçulmanos”, na maioria para a capital. O Exército regular sírio ainda retomou a cidade uma semana mais tarde, mas voltou a perdê-la para os ‘jihadistas” em dezembro, que ali permaneceram até abril do ano seguinte.

Nesse período, o sacerdote greco-católico relata ainda que 13 freiras foram sequestradas pelos militantes islamitas num convento ortodoxo e levadas para a cidade de Yabroud, nas imediações de Maalula, até serem envolvidas numa negociação com as autoridades de Damasco de troca de prisioneiros.

“Antes do fim de Assad, não havia liberdade nem paz”, observa Jalel Razel, debaixo da sua túnica preta, que compreende as grandes manifestações de festa dos últimos dias nas cidades sírias e que, mesmo perante a incerteza, está pronto para conceder “um período de tolerância de um a três meses” até tirar conclusões se as palavras de reconciliação das novas autoridades “são honestas ou não”.

Numa entrevista à cadeia televisiva CNN, durante o seu percurso triunfante para Damasco, al-Jolani abordou o seu passado de militância em grupos radicais e argumentou que “uma pessoa na casa dos vinte anos terá uma personalidade diferente de alguém na casa dos trinta ou quarenta, e certamente de alguém na casa dos cinquenta”. E o padre de Maalula está pronto a dar-lhe esse benefício da dúvida.

“Todos têm um passado e todos têm um futuro. Se o dele for numa bela Síria em paz, os cristãos vão apoiá-lo”, afirma.

O receio é facilmente demonstrado no pátio fronteiro da Igreja de São Jorge, no fim da missa. Várias pessoas não querem identificar-se e muito menos falar de política. Abu Nassir, 70 anos, entende que, depois de tudo o que experimentaram e de todo o terreno novo que se abre à sua frente, as pessoas sejam evasivas.

“Tenho medo de tudo”, declara sem rodeios este habitante cristão de Maalula, na praça central da cidade, onde se mantêm os vestígios dos combates entre a Frente al-Nusra e o Exército sírio nas paredes do casario em tijolo cru e cimento claro, dos conventos e mosteiros ao longo das encostas íngremes, que são dominadas por cruzes e imagens de figuras bíblicas

Abu Nassir diz conservar uma “grande desconfiança” em relação a al-Jolani e ao seu governo de transição, que “vão trazer muitos problemas”, e também não está convencido de que a guerra esteja acabada na Síria, apontando os ataques israelitas, que, desde a queda do regime, segundo a televisão Al-Jazeera, ascenderam a cerca de 800 em território sírio, ainda que as duas partes declarem não ter interesse em abrir hostilidades uma contra a outra. Mas no final e tudo somado, o cristão desabafa: “Que Deus nos ajude!”.

Há uma semana, o outro padre greco-católico de Maalula, Fadi al-Barjil, 44 anos, saiu da cidade mal recebeu a notícia da deposição de al-Assad e um alerta de um clérigo muçulmano de Damasco de que a sua vida corria perigo. De imediato, o religioso cristão fechou a Igreja e o Mosteiro de Mar Sarkis, um dos mais antigos da Síria e erguido no século V sobre um templo pagão, e pôs a família a salvo. Mas voltou no mesmo dia.

Durante vários dias, a população muçulmana da cidade, maioritariamente sunita, festejou com tiros o fim do regime, relata, mostrando vídeos no telemóvel em que se escuta uma incessante orquestra de rajadas para o ar. “Liguei para o líder deles a pedir para pararem, porque as pessoas estavam assustadas. E pararam”.

No entanto, na primeira sexta-feira de oração pós-Assad, dia em que al-Jolani convocou os sírios para uma grande celebração sem tiros nem intimidação, as rajadas voltaram. E hoje cessaram de novo.

“Não precisamos de reescrever o passado nem precisamos criar um estado islâmico, há espaço para todos”, sustenta o sacerdote greco-católico, que espera conhecer a nova autoridade da cidade designada pelo governo de transição sírio e que era aguardada ainda hoje ou na segunda-feira. A anterior e os elementos da polícia partiram entretanto para lugar incerto. Do mesmo modo, tal com o padre da Igreja de São Jorge, tenciona dar um prazo de tolerância num máximo de três meses ao atual executivo e, “logo a seguir, tem de marcar eleições”.

E do seu resultado, Nura Mulem, 70 anos, uma das fiéis desta comunidade, espera que todas as minorias do país “saiam representadas e que os cristão se mantenham unidos” para atingir esse objetivo.

Ao longo dos últimos anos, os cristãos de Maalula têm-se esforçado por recuperar o valioso património danificado da sua longa herança, ainda que tenham sido pilhados, vandalizados e em alguns casos perdidos vários ícones e outros artefactos, durante a ocupação da Frente al-Nusra. Quando os seus combatentes foram expulsos pelo Exército sírio e para celebrar a sua partida, foi colocada uma imagem da Virgem Maria no corte de uma montanha a zelar pelos habitantes e que ainda lá está.

No ambiente tenso que se apoderou desde há semana da cidade, sai música muito alta da única mesquita de Maalula e do seu minarete danificado nos combates, o que alguns cristãos interpretam como uma provocação. Mas Samer Zeiner, um residente muçulmano, diz que não há nada a temer e que todos os dias reza por eles e por uma Síria em paz.

“Não podemos cair na armadilha de Assad, que tentou virar-nos uns contra os outros para permanecer no poder”, recomenda junto da mesquita e da praça central, onde se começou a erguer esta manhã, o dia em que a maioria das igrejas e das escolas do país reabriu, uma grande árvore de natal em tela verde: “E eu vou ajudar a montá-la e celebrar com os meus irmãos cristãos”.

HB // PDF

By Impala News / Lusa

Impala Instagram


RELACIONADOS