‘Villa’ luxuosa escondia fábrica da ‘cocaína dos pobres’ ligada a Assad

A queda do regime sírio destapou, numa ‘villa’ luxuosa junto à fronteira com o Líbano, um dos seus laboratórios de “captagon”, uma anfetamina altamente aditiva que era traficada para financiar um Estado falido e que lhe trouxe má vizinhança.

'Villa' luxuosa escondia fábrica da 'cocaína dos pobres' ligada a Assad

A propriedade da ‘villa’ de vários pisos em pedra branca, uma piscina vazia e um jacúzi nos seus interiores de luxo é atribuída pelos militares rebeldes que depuseram o Presidente Bashar al-Assad ao seu irmão, Maher, que se encontra em parte incerta e seria também o dono desta fábrica de captagon que se desenvolvia em vários dos seus grandes salões e anexos.  

Os habitantes de al-Dimas, a escassos quilómetros da fronteira de Masnaa com o Líbano e a menos de uma hora de Damasco, pilharam e vandalizaram entretanto o imóvel, à semelhança de quase todos os espaços associados à ditadura de cinco décadas, mas toda a linha de produção de captagon estava intacta quando os militares rebeldes chegaram ao local, no seu percurso vitorioso até Damasco, onde foram descobertas outras semelhantes.

É um soldado tajique da Organização para a Libertação do Levante (Hayat Tahrir al-Sham, HTS) que guia, de máscara no rosto, a visita ao elegante complexo, começando por um salão de chão em mármore e iluminado por um enorme lustre de cristais, onde se acumulam dezenas de contentores assinalados como cafeína e pilhas de grandes sacos de lactose, indicando que se tratava de dois elementos usados na composição de captagon.

Mas também se encontram nos vários espaços da fábrica, cercada por altos ciprestes, componentes químicos não identificados, apesar da proveniência chinesa, indiana e de vários países europeus, segundo os rótulos nas embalagens, e uma quantidade considerável de aparelhos industriais, entre máquinas misturadoras, prensas hidráulicas e empilhadoras.

Na zona da garagem, há mais sacos, contendo milhares de bolas de naftalina vazias, onde eram acondicionados quatro comprimidos de captagon a três dólares cada, já na forma em que chegavam ao consumidor. A droga encontrada em al-Dimas foi, segundo o soldado tajique de 26 anos, que se identifica pelo seu nome militar, Abu Hanifa Tajiki, transportada para a capital síria num camião.

Desde a queda de Bashar al-Assad foram descobertas na Síria várias instalações de fabrico de captagon, que ajudaram a florescer um comércio global anual de 10.000 milhões de dólares (9.550 milhões de euros) desta droga altamente viciante, que era sobretudo traficada para os países vizinhos do mundo árabe.

Entre os locais utilizados para a produção à escala industrial da droga encontram-se a base aérea de Mazzeh, nos arredores de Damasco, que era também uma prisão política, uma empresa de comércio de automóveis em Latakia, na região alauita do ex-Presidente sírio e uma antiga fábrica de batatas fritas nos arredores da capital.

O captagon foi desenvolvido na Alemanha na década de 1960 como um estimulante de prescrição médica para doenças como a narcolepsia. Mais tarde, foi proibido devido a problemas cardíacos e às suas propriedades viciantes. Os seus efeitos semelhantes aos das anfetaminas tornaram a chamada “cocaína dos pobres” popular no Médio Oriente, nas elites e nos combatentes, uma vez que aumentava a concentração e reduzia a fadiga.

O governo de al-Assad reconheceu uma oportunidade nesta droga de fabrico barato em plena crise económica da Síria e das pesadas sanções a que estava sujeita.

O captagon é produzido através de um processo químico simples, que envolve a mistura de derivados de anfetamina com excipientes para formar comprimidos, geralmente em laboratórios improvisados, como era o caso daquele descoberto em al-Dimaas, onde as forças governamentais abandonaram sem resistência um posto de controlo que mantinham junto à localidade, na autoestrada que liga à fronteira com o Líbano, e um blindado de fabrico soviético T52 soviético, entretanto já removido.

Inicialmente, segundo a estação televisiva al-Jazeera, a cadeia de produção do Captagon na Síria era controlada por grupos armados, mas, à medida que o governo recuperou território durante o contra-ataque à revolta desencadeada em 2011 no país, começou a aumentar a gestão das rotas de contrabando e das instalações de fabrico.

Os carregamentos eram disfarçados em pneus, rodas dentadas de aço, rolos de papel industrial, sofás ou mesmo frutas de plástico e encaminhados através da Europa e de África para disfarçar a sua origem antes de chegarem aos países do Golfo, tornando-se num produto essencial das exportações sírias.

À frente desde negócio é apontado o nome de Maher al-Assad, ex-comandante da Guarda Republicana e da Quarta Divisão Blindada, que dirigia uma rede que incluía altos oficiais do regime, homens de negócios e líderes de máfias a troco da sua lealdade, e um centro de distribuição a partir do bastião alauita em Latakia, de onde o ex-Presidente sírio partiu para a Rússia em 08 de dezembro, ironicamente no dia em que o seu irmão cumpriu 57 anos, antes de fugir para parte incerta. 

A sua residência em Damasco foi pilhada nos dias seguintes pela população libertada, incluindo um grande ‘bunker’ subterrâneo. As novas autoridades emergentes da coligação de grupos rebeldes que depôs o regime já não permitem o acesso ao local, bem como ao palácio presidencial, mas deixam à vista de todos os laboratórios de captagon, cujas receitas eram também usadas para alimentar a sua máquina repressiva. 

As principais rotas de contrabando eram as fronteiras porosas da Síria com o Líbano, a Jordânia e o Iraque, a partir das quais seria distribuída por toda a região, sobretudo os países ricos do Golfo, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. 

No Líbano, o tráfico de captagon também floresceu, sobretudo perto da fronteira com a Síria e no vale do Bekaa e seria facilitado pelo grupo armado xiita Hezbollah, que era aliado de Assad.

Após a descoberta de caixas de fruta meticulosamente embaladas com fardos da droga escondidos entre romãs e laranjas, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos impuseram proibições aos produtos agrícolas libaneses. Mas o captagon também entrou nos mercados internacionais, chegando ao Sudeste Asiático e a partes da Europa.

Segundo Caroline Rose, diretora do Projeto de Comércio de Captagon do New Lines Institute, com sede em Nova Iorque, o comércio global anual desta droga tem um valor estimado em 10.000 milhões de dólares, com o lucro anual da família al-Assad deposta a atingir cerca de 2.400 milhões de dólares (2.293 milhões de euros).

Embora os países vizinhos há muito tentem proibir o tráfico de drogas, a influência sobre al-Assad era limitada. A Arábia Saudita impôs sanções rigorosas para o tráfico de captagon e reforçou a segurança nas fronteiras, colaborando com outros estados do Golfo para vigiar as rotas de contrabando. 

Mas o captagon proporcionou a Bashar al-Assad uma alavanca para pôr fim ao isolamento político. Em maio de 2023, a Síria foi readmitida na Liga Árabe, de onde estava suspensa desde 2011 devido à brutal repressão contra os protestos iniciados naquele ano com a Primavera Árabe e que se prolongou por mais de uma década de guerra civil, comprometendo-se a combater o contrabando, o que levou à formação de um comité regional de coordenação da segurança.

O colapso do regime sírio traz agora incógnitas sobre o futuro do tráfico de captagon, numa altura em que as novas autoridades de Damasco se esforçam para mostrar ao mundo que são confiáveis e não tencionam prosseguir as políticas de um estado fora de lei, bem como recuperar uma economia desastrosa e consolidar a situação de segurança no país.

“Neste momento, temos a situação sob controlo, esta população tem o direito de viver em sossego, sem medo de bombardeamentos e dos combates”, afirma Abu Hanifa Tajiki, vagueando com a sua máscara sob um intenso cheiro pestilento artificial nas instalações de al-Dimaas, onde chegou há alguns dias das zonas libertadas de Idlib, no noroeste da Síria, relatando que os responsáveis das instalações e os anteriores militares que protegiam o lugar fugiram e eram os elos fracos desta história, com os seus vencimentos miseráveis num negócio de milhões.

Cumprida a sua parte na guerra, o soldado tajique pretende chamar a sua família e estabelecer-se na Síria, onde, à semelhança de muitos outros combatentes, e uma parte provenientes de grupos ligados à al-Qaida e Estado islâmico, defende o estabelecimento da ‘sharia’, ou lei do Islão: “Afinal, foi para isso que trabalhámos estes anos todos, mas não temos problemas em viver em paz com pessoas de outras religiões, desde que respeitem a nossa”, sustenta o militar que traz um gorro decorado com a palavra “antiterror”.

*** Henrique Botequilha (texto) e António Pedro Santos (fotos), enviados da agência Lusa ***

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By Impala News / Lusa

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