Deslocados libaneses fazem das ruas, praças e praias as suas novas casas
Famílias libanesas preferem as ruas, praças e praias de Beirute às suas casas desde a intensificação dos bombardeamentos israelitas no sul do país e nos arredores da capital, em busca de segurança e sem regresso à vista.
Desde o agravamento do conflito entre Israel e o grupo xiita Hezbollah, as autoridades libanesas abriram mais de 500 locais de alojamento temporário para uma população estimada de mais de um milhão de pessoas deslocadas, mas já não há espaço para todos, levando a que muitos se instalem em abrigos precários em locais públicos ou apenas ao relento.
Rim Hussein até conseguiria alguns metros quadrados numa das escolas que interromperam as aulas e foram convertidas em centros de deslocados, mas a família de sete pessoas, das quais cinco são crianças e uma é um bebé órfão de sete meses, teria de ser separada e recusa-se. Já lhe bastou abandonar a sua casa há uma semana e logo a seguir saber que a perdeu.
A mulher de 55 anos estava já instalada no chão do paredão que se alonga na frente marítima do bairro Ain Al-Mraiseh, junto da baixa da capital libanesa, quando o senhorio a avisou que o seu apartamento nas imediações do aeroporto de Beirute tinha desaparecido num dos raides aéreos que Israel tem vindo a executar numa base diária desde há cerca de duas semanas no conflito com o Hezbollah.
“Na verdade, aqui temos tudo o que precisamos, porque pelo menos sentimo-nos seguros”, afirma resignada, mas também grata pela solidariedade de habitantes da cidade, que vão deixando comida, água e dinheiro, como um homem que naquele instante lhe oferece um saco de roupa para as crianças, “um homem bom”.
Como muitas outras famílias que ocuparam o paredão e praias rochosas junto do Mediterrâneo, a de Rim Hussein limitou-se a aparecer e ficar, uns com colchões outros não, alguns sobre esteiras, outros sobre telas de lona e cartões, e muito poucos com tetos improvisados numa cidade abençoada pelo clima soalheiro e ameno nesta altura do ano.
“Rezo a Deus todos os dias para que alguém nos encontre um lugar e que tudo isto acabe”, desabafa a mulher, enquanto aconchega dentro das suas mantas o bebé que adotou após a mãe ter morrido num desastre de automóvel, recorrendo à memória da guerra entre os mesmos protagonistas em 2006 e com a convicção de que “esta é ainda pior, com mais ataques e mais fortes”.
Os deslocados à beira-mar, agora vizinhos de hotéis e apartamentos de luxo com panorâmicas de postal, fazem parte do estrato mais baixo de largos milhares de libaneses que se acomodam à nova condição, que não é igual para todos.
Abu Ahmad foi dos que encontrou um teto ao alojar-se na casa de um familiar no bairro costeiro de Beirute, onde vivem agora 12 pessoas, das quais cinco são crianças, experimentando um novo período de crise aos 44 anos, após a guerra em 2006 e de a explosão no porto de Beirute em 2020 o ter deixado cego.
Mas reconhece que não se pode queixar, quando “a segurança estava perdida” e partiu há uma semana da sua residência em Dahieh, no subúrbio sul e bastião do Hezbollah em Beirute, na mesma altura em que um bombardeamento israelita arrasou o seu quartel-general e matou o seu líder histórico, Hassan Nasrallah, numa sucessão de eliminação de outros altos dirigentes e comandantes militares do grupo xiita aliado do Irão.
Também no sul do país, milhares de pessoas encetaram a viagem para o centro de Beirute, fugindo dos raides aéreos das forças israelitas, que afirmam visar posições do Hezbollah usadas para lançar mísseis e ‘rockets’ sobre Israel, mas, mais uma vez, a sorte de cada um é diversa.
Um homem de negócios que não se identificou da cidade de Tiro, alojou-se com a mulher e filhos num hotel do bairro de Hamra, na capital libanesa, cujo ‘lobby’ e piscina são agora parques de diversões de crianças de famílias abastadas. Ao contrário da guerra em 2006, que durou pouco mais de um mês, acredita que esta vai demorar mais: “Pelo menos até ao final do ano”.
Hamra, no coração comercial da cidade, tornou-se num bairro sobrelotado, com os passeios ocupados com carros de matrículas do sul do Líbano, e escolas com desalojados a transbordar das suas salas de aulas para os espaços exteriores.
O recreio do colégio cristão de Saint François encontra-se coberto com pessoas estendidas em colchões sob os alpendres e árvores frondosas, vigiando a passagem de triciclos motorizados carregados com frutas e legumes para abastecer a cantina.
Mas Raad Abdallah, um sírio de 21 anos, que também era residente em Tiro, não tem para onde ir. Já tinha fugido do conflito no seu país para o sul do Líbano, onde trabalhava na construção civil, mas não pretende fazer o caminho de volta para a sua terra natal, na região de Al-Hasakah, no nordeste da Síria, marcada por uma sucessão de confrontos entre diversas fações políticas e étnicas na última década.
“Estou preso”, observa o agora duplamente refugiado e novo sem-abrigo da praça dos Mártires, no centro de Beirute, que na guerra civil libanesa separava os dois lados da cidade.
Aos pés do monumento aos mártires, que continua cravejado de balas, o sírio lamenta ter ficado igualmente no meio de dois conflitos sem relação um com o outro, subsistindo através da generosidade dos habitantes da capital e de organizações não-governamentais que lhe oferecem comida, até que Israel e Hezbollah cessem hostilidades para regressar a Tiro, ou que lhe ocorra uma ideia melhor.
E essa é também a nova condição de Amal Khalil, 65 anos, cuja família usou uma tela azul e uma armação de restos de alumínio para erguer uma tenda improvisada em plena praça dos Mártires, sob a solenidade de uma enorme bandeira libanesa e a monumentalidade da mesquita de al-Amin e suas cúpulas azuis e da torre da igreja católica de São Jorge, mesmo ao lado.
A débil estrutura precária é a nova casa para quatro adultos e quatro crianças, que se puseram em fuga dos arredores sul da capital, quando há uma semana “a situação enlouqueceu” e as explosões recorrentes começaram a sacudir o prédio onde residia. Mas já não havia espaço nas escolas para os acolher.
“Clamo a Deus que o Líbano continue forte e consiga a paz”, afirma esta mulher sem certezas da existência de lugares ainda seguros no Líbano, depois de, na madrugada de quinta-feira, um bombardeamento israelita ter visado um edifício no bairro de Bashoura, levando a vida de nove pessoas, das quais sete eram profissionais de uma organização de saúde próxima do Hezbollah.
Este ataque ocorreu a dois passos da nova residência a céu aberto de Amal Khalil no centro simbólico da soberania do Líbano, do parlamento e de várias instituições governamentais: “Fugimos de casa mas parece que as bombas podem cair em qualquer lugar”.
Em menos de uma semana, os bombardeamentos israelitas atingiram duas vezes o centro de Beirute, a toda a hora patrulhado por drones israelitas e seus zumbidos persistentes, contrariando a perceção de que apenas os subúrbios de maioria xiita controlados pelo Hezbollah são atacados, numa guerra que cada um encara à sua maneira.
Todos os dias depois do trabalho, Mohammad faz o percurso inverso dos deslocados dos subúrbios sul e regressa à sua casa em Dahieh, onde vive sozinho após ter posto a mulher e três filhos a salvo numa zona mais protegida da cidade
O segurança de um banco em Hamra habituou-se a interromper o sono a cada aviso das forças israelitas para se afastar 500 metros da sua residência porque a área está na iminência de ser atacada, com a justificação de albergar homens do Hezbollah.
“Não os percebo, são casas civis, é tudo civil. O meu prédio tem 14 apartamentos e so restamos duas pessoas, mas insistem em lançar bombas para o Hezbollah”, comenta Mohammad, ao recomendar às forças libanesas que não temam o Exército israelita, que, a par da intensificação dos ataques aéreos, iniciou uma invasão terrestre no sul do país.
Tal como ele diz que não receia entrar na estatística de quase de dois mil mortos desde o início desta crise, número já bem acima da última guerra, em 2006, ao aventurar-se diariamente em Dahieh, entretanto tornada “cidade fantasma”.
Até porque, pelas suas contas, já experimentou pelo menos sete períodos de violência máxima no Líbano ao longo dos seus 55 anos, e continua fora da estatística de quase dois mil mortos neste novo episódio de guerra: “Quando Deus decidir que tenho de morrer, eu morro. Mas só durmo na minha cama”.
*** Henrique Botequilha (texto) e João Relvas (fotos), enviados da agência Lusa ***
HB // APN
By Impala News / Lusa
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