Luto, a dor de quem fica e as várias fases do seu processo
Quando perdemos alguém, passamos por um período de adaptação até voltarmos a interessar-nos pela nossa própria vida. Saiba como é a dor dos que ficam.
Quando perdemos alguém, passamos por um período de adaptação até voltarmos a interessar-nos pela nossa própria vida. Anabela ficou sem o filho na tragédia do Meco, Filomena vive o desaparecimento de Rui Pedro e Hugo deixou de viver quando a companheira morreu no IPO. Há várias formas de luto e nunca ocorrem de forma linear. Saiba como é a dor dos que ficam.
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«Morri ali sentada à porta do crematório.» Anabela Pereira perdeu o filho de 21 anos, Tiago, uma das vítimas da Tragédia do Meco, a 15 de dezembro de 2013. A primeira reação de Anabela, o choque, é comum quando se perde um ente querido e é o início do processo do luto, a dor de quem fica, que, de forma geral, os psicólogos dividem em «negação e choque», primeiro, depois «raiva, negociação, depressão» e, finalmente, «aceitação».
«Fiquei em choque total até ao dia da Missa do 7.º Dia», recorda a mãe de Tiago. «Dormia na cama do meu filho agarrada às coisas dele, da camisa com o cheirinho dele… A minha cabeça continuava a não querer acreditar que isto se estava a passar com o meu menino, a quem eu ainda levava o pequeno-almoço à cama.»
Nem todos vivem o luto de igual forma. Há quem salte etapas ou se detenha numa das fases. O processo é distinto para cada indivíduo, depende de vários fatores e o tempo é relativo. Um mês pode chegar, mas um ano pode ser apenas o princípio.
«Não é fácil» – portanto – «definir o luto», concorda o coordenador das consultas de luto do Hospital de St.ª Maria, professor Carlos Gois. Filomena Sousa concorda.
Acrescenta a psicóloga especialista do mesmo serviço que o processo «tem muitas variantes» e há apenas «uma coisa em comum», complementa Carlos Góis, «a ausência da pessoa que desapareceu».
Manuel Mendonça, pai de Rui Pedro, diz-nos inabalável que o filho «está vivo». «Não morreu», exclama. A mulher, Filomena Teixeira, tem sido o rosto de um caso de luto em que não há corpo para velar.
Rui Pedro desapareceu a 4 de março de 1998, há 18 anos. Como dizia o professor responsável pelas consultas de luto do St.ª Maria, o luto existe na mesma porque observa-se o que de há em comum em quem é privado de um ente querido, a tal «ausência da pessoa que desapareceu» – o que pode confirmar nas confissões de Filomena.
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«Quando tudo à nossa volta parece desmoronar, tento respirar duas vezes e não sair da rotina, fingir que está tudo normal para evitar a dor, porque vivo em constante fragilidade, e a [dor] que me consome é tão avassaladora que todas as outras me parecem suportáveis, por mais catastrófica que seja a realidade que me rodeia.
«O meu pensamento está sempre focado na minha dor e tudo o que faço é a pensar nele», o filho desaparecido. «Sinto-me amputada sem a presença dele e corro o risco de ver a alegria morta», descreve a mãe de Rui Pedro.
O futebolista Hugo Vieira, que há pouco mais de um ano perdeu a mulher numa cama de hospital do Instituto Português de Oncologia (IPO), mantém-se detido na primeira fase do luto: negação e choque.
Diz-nos que não é «de todo um exemplo de esperança porque, sinceramente», não tem «mais projetos de vida». Exemplo desta negação é a afirmação de que passou a viver apenas em função do sonho de Edina.
«A minha vida terminou no dia 24 de janeiro de 2015. Todos os meus sonhos partiram com ela, que estava em tudo o que eu sonhava. Amarrei-me ao sonho dela, que era que eu vingasse no futebol.»
Hugo mantinha a convicção de que não conseguiria «viver sem ela» e de que jamais veria «luz ao fundo do túnel» até que, em março deste ano viria a ser pai. Dois anos antes, afirmava, porém, que não voltaria a refazer a vida.
O golpe duro deixara-o num torpor aparentemente sem fim. «Éramos únicos. Especiais… O que vivemos dentro do IPO tornou tudo ainda mais forte e especial… Único! Eu nunca vou aceitar isto. Nunca!»
10 a 20% precisam de ajuda
Do choque à aceitação, cada um vive o luto de forma diferente. Aspetos emocionais e íntimos, familiares, culturais, religiosos, etc., influem, de facto, na forma como esta dor se desenvolve, mas que nunca chega a ter fim.
«O luto nunca acaba, transforma-se. É o processo através do qual as pessoas assimilam a realidade da sua perda e encontram forma de viverem sem a presença física da pessoa falecida”», explica Filomena Sousa, que se dedica no Hospital de St.ª Maria às consultas desta especialidade.
«É uma experiência física, emocional, comportamental, intelectual, social e espiritual que obriga a novas conceções do mundo. A maioria realiza um processo normal e apenas 10 a 20% desenvolvem um luto complicado ou patológico», ou seja, recusam-se ou são incapazes de percorrer esta experiência e aí precisam de ajuda especializada.
«Num processo de luto normal existe, frequentemente, boa relação com falecido.» O enlutado «consegue expressar emoções e tende a ter boa rede de suporte social».
Mas «quem teve uma relação ambivalente com o falecido [ou desaparecido, no caso, como vimos, dos pais de Rui Pedro] ou de grande dependência, que pelas suas características de personalidade é mais vulnerável do ponto de vista psicológico, que tem antecedentes de doenças mentais ou cujas circunstâncias da morte do falecido foram muito traumáticas (acidentes, suicídio, morte imprevisível) tem maior probabilidade de desenvolver um luto complicado», enquadra a psicóloga especialista.
Na segunda fase do luto, que se segue ao choque, «podem aparecer respostas como mumificação (deixar o quarto do falecido exatamente como ele está), sentimentos de raiva e culpa, comportamentos de hiperatividade, isolamento e ruminações obsessivas (pensamento constante acerca do falecido)».
No enlutado, surge, nesta altura, «um evitamento do confronto com a perda». «As pessoas podem, por exemplo, evitar locais onde habitualmente estavam com a pessoa falecida, evitarem ir ao cemitério ou desenvolver comportamentos aditivos (como forma de se anestesiar e não sentir a dor).
«A função adaptativa desta fase é a proteção contra a dor e a fragmentação e a aceitação gradual da realidade da morte», esclarece a psicóloga que orienta as terapias de luto no Hospital St.ª Maria.
A fase de «confronto e conexão é a que muitos chamam, excessivamente, de ‘depressão’ (que não o é, verdadeiramente) porque é neste momento que a pessoa começa a permitir-se entrar em contacto com a realidade da perda e sente mais saudades e tristeza, o que é normal.»
Por último, atinge-se o «crescimento e transformação, a que se chama também fase de aceitação», preconiza o professor Góis. É precisamente quando «devolvem sentido à perda» que passam a «ser capazes de a integrar [à perda] no seu dia a dia e, desta forma, ficam novamente mais disponíveis para o mundo exterior e para os outros», conclui Filomena Sousa.
O processo é, no entanto, «oscilatório». Pode avançar-se ou recuar-se nas fases. Por exemplo, com a aproximação de datas como o aniversário do ente perdido.
«A pessoa pode estar numa fase de conexão, contacto com a dor e, num certo momento, voltar a ter comportamentos de negação e evitamento. Isto não significa que seja um retrocesso, mas é sim o normal de um processo de luto.»
Consultas de luto
A Consulta de Luto «surgiu oficialmente em janeiro de 2016, embora alguns de nós realizemos grupos de luto, no serviço de psiquiatria do Hospital de Stª Maria, desde 2013», informa o coordenador desta prática, professor Carlos Góis.
«O nosso interesse pela área do luto surgiu das necessidades que detetávamos na intervenção de ligação aos outros serviços médico-cirúrgicos, quando chamavam a psiquiatria ou psicologia para prestar apoio noutros serviços», prossegue Filomena Sousa.
«Frequentemente nos deparávamos com situações de lutos de familiares de doentes que faleceram durante o internamento, lutos do doente internado, que estamos a acompanhar e que entretanto perdeu alguém durante o internamento, e lutos prévios do doente internado e que estão a condicionar a sua situação de saúde.
«Por exemplo, é sabido que as pessoas com lutos complicados desenvolvem frequentemente mais problemas cardiovasculares e outros problemas de saúde que consomem mais recursos hospitalares e que têm maior probabilidade de desenvolver lutos patológicos.»
É possível recorrer a ajuda sem dar a cara, de forma anónima, o que, para muitos, é menos penoso. Na Internet, em consultaluto, podem marcar-se consultas em conferência – o paciente vê o psicólogo e vice-versa – ou a ajuda é solicitada e fornecida por email.
É um projeto da Universidade do Minho e da Universidade de Memphis (EUA) com formação em terapia construtivista do luto financiado pela Fundação Portuguesa para a Ciência e Tecnologia, pelo que o paciente não paga as consultas.
Luto sem corpo
O luto existe até nos casos em que o corpo de um ente querido nunca seja encontrado, como na situação de Rui Pedro. «Em todas as culturas há rituais de luto e não é por acaso. Ver o corpo, ir a um velório ou funeral é importante para poder aceitar a perda.
«Quando o corpo nunca é encontrado, ainda que se saiba que a maior probabilidade é a de que o ente querido esteja morto, o não confronto com a realidade da morte dificulta o luto.
«Este processo fica adiado na expectativa de um reencontro. E neste sentido, sim, a esperança desse reencontro interfere no luto. As pessoas podem manter comportamento de busca incessante e são as que, com frequência, têm a sensação de que veem a pessoa que perderam na rua, quando se cruzam com alguém com características semelhantes às do desaparecido», explicam os especialistas das consultas de luto do Hospital de Stª Maria, Filomena Sousa e Carlos Góis.
«Dizem que tudo chega com o tempo para quem sabe esperar. Não sei se acredito! Não sei se vivi, mas tento, de todas as formas, não destruir as rotinas que me acalmam a alma. Eu queria devorar a vida, mas já não tenho forças físicas. Nunca aceitarei a dependência total. Aí, morrerei, como uma flor não regada», confessa Filomena Teixeira, mãe de Rui Pedro.
Aceitar e despedir-se
A fase de luto a que se chama de «confronto e conexão é a que muitos autores chamam, excessivamente, de ‘depressão’», explicam os especialistas. Será esta a fase por que passa Anabela Pereira, mãe de Tiago, vítima na Tragédia do Meco.
«O choque de ouvir do outro lado da linha ‘ligue a TV e veja a SIC Notícias’ e ver o que estava a acontecer… Éramos almas gémeas. E foi o terror… Às 17h00 confirmam-me que é o meu menino que está na morgue…
«Foram os piores momentos da minha vida, com desmaios, injeções… Mas o pior estava para vir, o velório, o funeral, todo acompanhado pelas grandes amigas que tenho (elas sabem quem são), até à hora da despedida final, a entrada para a cremação.
«Morri ali, sentada à porta do crematório. Dormi na cama do meu filho agarrada às coisas dele, da camisa com o cheirinho dele, até à Missa do 7.º Dia», conta-nos, destroçada, três anos após a perda.
Nesta altura, geram-se «representações internas do falecido, o que permite que se possam cortar laços exteriores (desmanchar um quarto, guardar fotografias, etc.) porque a pessoa mantém vínculo com o falecido internamente (pode, por exemplo, adquirir-se um comportamento característico do ente querido e assim mantê-lo presente de forma simbólica na sua vida)», esclarece Filomena Sousa, psicóloga.
Texto: Luís Martins
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