Preconceito e burocracia atrasam acesso de africanos com VIH em Portugal ao SNS
A população imigrante de origem africana a viver em Portugal tem mais infeções por VIH e hepatites, mas depara-se com várias barreiras ao tratamento, como o preconceito e a burocracia, que atrasam a resposta e podem levar a mais infeções.
A constatação é de quem está no terreno a sensibilizar e a disponibilizar respostas a esta população, no âmbito do GAT Afrik, um serviço de respostas integradas confidencial e gratuito dirigido à população imigrante de origem africana.
A unidade móvel do GAT Afrik estaciona em várias zonas e a Lusa encontrou-a junto à estação ferroviária de Benfica, em Lisboa, onde montou uma tenda para quem quer fazer testes rápidos ao VIH, mas também a outras doenças, como hepatites ou sífilis, obter preservativos ou simplesmente informação.
Diógenes Parzianello, coordenador deste serviço, disse à Lusa que a resposta destes imigrantes é sempre “boa” e que eles sabem que esta é uma forma de terem acesso ao tratamento e de não serem discriminados nos serviços de saúde.
“Trabalhamos especificamente com a população migrante de origem africana, que é (…) uma população-chave também muito visada na questão das infeções transmissíveis, do VIH, porque é uma população que sofre com as barreiras linguísticas, com o estigma já de origem, do país de origem”, disse.
Muitos sofrem os danos do preconceito e sentem barreiras no acesso aos serviços de saúde, prosseguiu.
E a primeira dificuldade é para o ingresso no Serviço Nacional de Saúde (SNS): “Apesar de termos espaços que conferem a garantia do acesso aos serviços públicos de saúde, muitos chegam aqui já para fazer o seu tratamento e não conseguem aceder aos cuidados de saúde”.
O GAT Afrik ajuda nessa transição, promovendo um rápido acesso ao tratamento e prevenindo, dessa forma, novas infeções.
Embora todos os imigrantes residentes em Portugal, mesmo os ilegais, tenham o direito de aceder de forma gratuita aos cuidados de saúde para o VIH e hepatites virais (Despacho n.º 25 360/2001 e Decreto-Lei n.º 113/2011), as barreiras são muitas e os colaboradores do GAT Afrik testemunham-nas frequentemente.
“Apesar de existir um despacho, é uma questão muito burocrática ainda. A gente tem que fazer uma comprovação do que aquela pessoa necessita do atendimento e do tratamento no SNS”, disse.
Como exemplo de entrave, Diógenes Parzianello referiu a dificuldade que estas pessoas têm para conseguir os necessários comprovativos de morada nas juntas de freguesia.
Obstáculos com consequências, pois, “com o passar do tempo, essa pessoa pode vir a adoecer se não se tratar”.
“Hoje em dia, com o tratamento, a pessoa não desenvolve a doença, não chega a desenvolver a sida, mas se ela não procura o tratamento, com o passar do tempo, ela pode adoecer e também infetar outras pessoas”, advertiu.
Segundo dados do Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT), responsável pelo GAT Afrik, este serviço – onde existe a possibilidade de atendimento em crioulo – encaminhou 693 pessoas para tratamento, das quais 252 tinham um teste positivo para a infeção pelo VIH.
Ricardo Fernandes, diretor-geral adjunto do GAT, disse à Lusa que os resultados dos testes permitem perceber que estas infeções – VIH, hepatites, especialmente da hepatite B – são mais altas nesta população do que na população em geral.
Uma tendência que se tem mantido alta, embora não esteja a crescer, adiantou.
Dados oficiais divulgados em 2024 indicam que a maioria dos novos casos de VIH (53,1%) ocorreu em indivíduos nascidos no estrangeiro, sendo Portugal o país de prova´vel conta´gio em 70,9% dos casos.
“O que quer dizer que nós também estamos a falhar. E serviços como este, o GAT Afrik, ajudam a diminuir o número de infeções, porque quando nós descobrimos pessoas que já estão infetadas e as colocamos em tratamento, estas pessoas não vão infetar novas pessoas”.
Ricardo Fernandes justifica um serviço específico para estes imigrantes africanos porque, “mesmo as comunidades que vivem cá, que são oriundas desses países, acabam por ter uma maior vulnerabilidade por questões sociais, de informação e também porque têm menos acesso aos cuidados de Saúde e mais dificuldade em ter acesso aos serviços de saúde”.
Por outro lado, esclareceu, há infeções que este serviço testa, “que são endémicas nos países de origem e que em Portugal, como por exemplo o caso da hepatite B, a maior parte da população é vacinada”.
“Por isso é que é muito importante nós testarmos, perceber se as pessoas são vacinadas, ou não, para podermos depois evitar eventuais surtos na comunidade também”, observou.
Para Ricardo Fernandes, “a entrada no mundo do tratamento do SNS nem sempre é fácil, por vários motivos. Algumas das pessoas estão indocumentadas e, portanto, primeiro há que tratar de toda essa documentação”.
E sublinha a importância do acompanhamento, após ultrapassadas as dificuldades de acesso ao SNS: “Nós continuamos para que a pessoa adira ao tratamento e se mantenha em tratamento”.
Quarenta anos após o primeiro caso de sida em Portugal, Ricardo Fernandes considera que ainda falta o país perceber que, apesar de, em termos absolutos, “a população geral, neste caso as pessoas que têm infeções por via heterossexual, serem em maior número, as que se infetam mais rápido são, de facto, estas populações que têm maior risco”.
“Aprendemos também que o investimento na prevenção, no rastreio e na ligação aos cuidados de saúde nestas populações, que são mais vulneráveis, tem que ser maior. Coisa que ainda não temos. Este investimento não é uma prioridade”, disse.
E lamentou: “No fundo, nós vemos que nos programas, na teoria, isso é posto, mas depois, na prática, não há ações, não há financiamento para, de facto, chegarmos a estas populações com todo o poder que nós temos”.
“Hoje em dia também sabemos como é que podemos prevenir e tratar o VIH. Ou seja, nós temos a ferramenta para acabar com o VIH como um problema de saúde pública em Portugal e no mundo inteiro. O que é que falta? Vontade política e recursos”, concluiu.
SMM // MLL
By Impala News / Lusa
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