Reportagem: O dia a dia desesperado dos médicos de família em tempos de pandemia

Consultas telefónicas, receitas por e-mail, vigilância a doentes e sobrecarga de trabalho burocrático são as marcas da pandemia no Centro de Saúde das Caldas da Rainha, cujos médicos de família fazem medicina de prioridades e levam trabalho para casa.

Reportagem: O dia a dia desesperado dos médicos de família em tempos de pandemia

José Eduardo Jesus, 61 anos, é o primeiro na fila de quatro pessoas que aguardam a abertura da Unidade de Saúde Familiar (USF) Rainha D. Leonor, nas Caldas da Rainha, no distrito de Leiria, onde às 08h00 tem marcada “uma consulta normal, de acompanhamento”, com um dos muito médicos de família que, por estes dias, têm o quotidiano alterado.

Em tempos de pandemia de covid-19, passou a ser normal que à entrada o espere Leandro Sousa, enfermeiro escalado nesse dia, para fazer a primeira hora da “gestão de entradas”, munido de termómetro e de borrifador para desinfetar as mãos de quem entra.

Este é o novo normal que, rotativamente, toca a todos os enfermeiros da USF, entre muitas outras tarefas que a pandemia trouxe a quem trabalha na unidade coordenada por Paula Oliveira, de medicina geral e familiar.

“Nós [médicos] não tirámos o curso para avaliar pessoas pelo telefone”, afirma, sentada no gabinete onde, desde o início da pandemia, há um ano, enfrenta a “grande sobrecarga de trabalho burocrático” sentida, sobretudo, na terceira vaga da doença.

Em finais de janeiro, a USF tinha em vigilância “mais de 200 pessoas” infetadas ou em isolamento, refletindo-se num dos maiores picos de trabalho para os médicos de família que fazem “o acompanhamento telefónico diário, incluindo aos fins de semana ou em datas festivas, como foi no Natal”.

A rotina desta profissional implica agora “chegar de manhã, atualizar a plataforma Trace-covid, distribuir os novos casos pelos médicos de família”, fazer escalas para acompanhamento daqueles que não têm médico de família e distribuir por outros os doentes dos médicos afetos ao ADR Comunitário (Área de Doenças Respiratórias), para onde são normalmente encaminhados os casos suspeitos.

A braços com uma plataforma “complicada e muitas vezes sobrecarregada”, nesta USF os médicos optaram por criar um ficheiro Excel, no qual inscrevem todos os utentes a seguir.

“Sabemos quais são os que inspiram mais cuidados e a esses tento ligar sempre de manhã, a saber como passaram a noite”, conta Paula Oliveira, acrescentando que, depois, faz “algumas consultas gerais”, no intervalo das quais contacta mais alguns utentes em vigilância, antes de regressar às consultas e restantes tarefas diárias.

“Nota-se um enorme acréscimo de contactos por e-mail, seja para dúvidas em relação a sintomas, pedidos de receita ou pedidos de exame”, explica a coordenadora da USF, somando a reposta a estes pedidos ao rol das tarefas diárias dos médicos.

Pelo meio, mais uns telefonemas para saber se os utentes infetados ou em isolamento precisam de “certificado de incapacidade temporária, se têm apoio para não terem de sair de casa, para informar sobre juntas de freguesia que prestam apoio e farmácias que levam medicamentos a casa ou  para dar altas clínicas”, relata a médica.

Acresce, por cada telefonema, a azáfama de “preencher todos os dados na plataforma, passar as baixas, as altas, as receitas, os exames”… Por isso, na maior parte dos dias, “priorizam-se os contactos, ficando os menos urgentes para fazer em casa, no final do dia, já fora das horas de trabalho”, sublinha.

No pico da terceira vaga, a coordenadora da USF chegou a “contactar doentes às 22h00”, tal como acontece com outros colegas que telefonam de casa e dos telemóveis pessoais.

“Há sobrecarga dos telefones fixos do centro de saúde, que só tem uma central que não conseguia dar resposta e teve de ser remodelada, além de que já há pessoas que não atendem números privados”, afirma, ilustrando o dia a dia de quem anda há um ano “a fazer medicina de prioridades”.

Do outro lado do corredor, Isabel Ramos alterna estas rotinas com consultas presenciais, entre as quais o seguimento de hipertensos e diabéticos e a área materno-infantil, “focada nas idades mais importantes, para que não interrompam a vacinação, por exemplo”.

Entre a consulta da pequena Matilde e a do bebé Afonso, explica que todos os dias responde a “dezenas de e-mails”, forma de comunicação que acredita que “irá ficar para futuro” e a que reconhece algumas vantagens.

A par dos “cerca de 20 telefonemas por dia”, no âmbito da vigilância covid-19, esta médica adotou como prática telefonar aos doentes que não vão à USF há muito tempo, “sobretudo os idosos, que ficam muito contentes e sentem que não estão abandonados”.

Em relação àqueles que não são pacientes dela, admite não ser “fácil avaliar por telefone” pessoas desconhecidas, ficando muitas vezes a dúvida, perante os sintomas descritos. “Será que fiz bem? Será que devia ter enviado para o hospital?” Por isso, faz frequentemente “mais um telefonema ao final do dia, ou ao fim de semana”, já para não falar “nos dias de Natal e de passagem de ano”.

“Damos mais horas, é muito mais cansativo e o que sabemos é que entramos às 08h00 e saímos quando calha”, diz, convicta de que a pressão vai manter-se quando a pandemia aliviar e “surgirem muitas pessoas ávidas de vir à consulta”.

Enquanto isso, na USF a pandemia continua a fazer rodar profissionais pelas tarefas do novo normal.

Leandro Sousa, que, entretanto, passou o termómetro e o borrifador a outra enfermeira, está de volta às funções de sempre, tratando de um doente que à entrada lhe segredou “Eu já tive covid, eu e a mulher, a miúda escapou”.

“Tivemos de nos adaptar a novas rotinas de funcionamento, mas tudo se faz”, garante o enfermeiro que, a par da atividade assistencial, tem colaborado no apoio à ADR e na vacinação contra a covid-19 em lares.

A coordenadora confirma. “Tudo se faz.” Em 2020, apesar da pandemia, realizaram-se na USF 70 mil consultas, 60% presenciais, e que abrangeram 11 mil dos 14 mil utentes inscritos.

A diferença relativamente ao período pré-pandemia é que “ao fim do dia se fecha o cacifo com a sensação de que fica sempre alguma coisa por fazer. Acorda-se de noite a pensar se nos esquecemos da tarefa x, do doente que nos ligou, da baixa que não passámos, se passámos a declaração de alta ou se o doente recebeu o e-mail”, remata Paula Oliveira.

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